Corte constitucional alemã introduz 3ª opção de gênero em registros civis

                                                              Symbolbild drittes Geschlecht (Colurbox)

  Symbolbild drittes Geschlecht (Colurbox)
Nesta semana, a visita da filosofa americana Judith Butler causou furor no Brasil. Manifestantes pro e contra sua presença exibiam cartazes e bonecos em protesto. Sua palestra marcada para ocorrer no Sesc Pompeia simbolizou de certa forma como a sociedade brasileira está cada vez mais dividida politicamente sobre diversos temas atuais.

A mesma disparidade no campo político-social pode ser vista também em diversos países pelo mundo. Dentre eles, a Alemanha se destaca pelas últimas eleições do mês passado com a ascensão do partido de direita Alternative für Deutschland tendo este logrado êxito de estar presente no parlamento alemão com 94 assentos, algo que não acontecia desde 1933 com a emergencia do nacional socialismo.

O segundo senado da corte constitucional alemã decidiu contrapor-se a esse novo fenômeno político. Nesta quarta-feira (8/11) pela manhã o primeiro senado da corte constitucional alemã (Bundesverfassungsgericht) decidiu pela não conformidade do §§ 22 inciso 3 da lei de registros civis alemã (Personenstandsgesetz PStG) com o direito geral de personalidade presente no artigo 2 inciso 1 da constituição em ligação com a cláusula do artigo 1 inciso primeiro sobre inviolabilidade da dignidade da pessoa humana. 

A argumentação da turma da corte focou no fato de que os preceitos constitucionais acima citados protegem também a identidade sexual dos que, de forma permanente, não se deixam categorizar nem pelo sexo masculino nem pelo feminino. Para além disso a corte constitucional argumentou que a opção binária masculino/feminino também viola a proibição de discriminação do artigo 3º inciso 3 presente na lei fundamental.

Efeitos práticos da decisão: o legislador alemão terá até dia 31 de dezembro de 2018 para criação uma nova regulamentação para a matéria. Os tribunais e repartições administrativas não são obrigados a seguir a norma antiga de registros — com dever de fundamentação — na medida em que ficar constatado que o desenvolvimento sexual das pessoas em questão apresentam variações dos padrões clássicos.

A decisão tem causado muito debate na imprensa e na academia. Um dos pontos sensíveis da discussão encontra-se na cláusula da divisão dos poderes. Argumenta-se que para tal decisão haveria a necessidade de uma legitimidade democrática originária e abrangente devendo assim ser tomada em primeiro plano pelo parlamento e não por uma turma da corte constitucional. Espera-se muita ressonância no mundo jurídico com essa decisão e o debate em torno desta questão está apenas começando.

Decisão sobre terceiro gênero vem tarde

cinco anos, Conselho Alemão de Ética já se posicionara: forçar pessoas intersexuais a optar entre masculino e feminino é "intromissão injustificável nos direitos de personalidade", afirma jornalista Christoph Strack.

A posição do Conselho Alemão de Ética tem 180 páginas e o lacônico título de Intersexualidade. E, já nas primeiras páginas, ela impressiona. "Um caso da vida real" é o título, e uma pessoa relata suas experiências. "Eu nasci em 1965 com uma grave deficiência cardíaca e órgãos genitais indefinidos. 

Por causa da deficiência cardíaca, fui batizado poucos dias depois do meu nascimento, pois os médicos partiram do princípio de que eu não sobreviveria por muito tempo..." O relato comovente de cerca de três páginas encerra com as palavras "minha identidade, minha honra foram retiradas de mim. Agora eu me ponho a caminho para recuperá-las".

Já em 2010 e 2011 o Conselho de Ética se ocupara da situação de pessoas intersexuais e buscou – tanto online como num evento de grandes dimensões – o contato com os interessados. Essa elaboração de uma posição aprofundada ocorreu "sob encomenda do governo alemão". Em fevereiro de 2012 – ou seja, há cerca de cinco anos – o documento foi publicado e enviado ao governo federal, acompanhado das tradicionais palavras bem intencionadas dos políticos.

Agora, no fim de 2017, o Tribunal Federal Constitucional deu o seu veredito. E basta pinçar duas frases centrais do papel do Conselho de Ética para entender que o governo alemão já poderia – ou deveria – ter agido desde 2012:

"O Conselho de Ética é da opinião de que há uma intromissão injustificável nos direitos de personalidade e no direito de tratamento igualitário quando pessoas que, devido à sua constituição corporal, não podem ser classificadas nem no sexo feminino nem no masculino são legalmente obrigadas a escolher entre uma dessas duas categorias nos cartórios de registro.

Por isso é necessário regulamentar que, para essas pessoas, ao lado dos campos 'masculino' ou 'feminino' também possa ser escolhido 'outro' ou então que nenhum registro tenha que ser feito até que a pessoa em questão possa decidir ela mesma". Essas são, aliás, declarações apoiadas por especialistas em ética tanto das igrejas como do mundo laico, que integram o conselho. Até hoje, elas ecoam o sofrimento dos afetados.

A suprema corte alemã as recupera agora. E isso soa espetacular e tem repercussão internacional. E é bom que seja assim. Mas essa atenção não surpreende, pois os juízes de Karlsruhe usufruem de prestígio internacional, como mostram suas viagens para debates com colegas ou as visitas que recebem de outros juízes supremos.

Porém, depois daquela recomendação tão clara do Conselho de Ética, que serve sobretudo à política, os legisladores já deveriam ter agido há muito tempo. Esse exemplo concreto mostra, com toda clareza, a importância desse órgão – com seu trabalho silencioso, mas muitas vezes profundo – para a política, o Parlamento e o governo. Assim, essa evidente inobservância é mais do que vergonhosa.

É importante diferenciar: a intersexualidade é uma questão claramente delimitada pela medicina. Para a percepção da dignidade dos envolvidos é irrelevante se ocorre um caso entre centenas ou entre milhares de nascimentos por ano. O relato de um caso real deixa isso claro. A intersexualidade se mostra de forma clara e é diferente da transsexualidade, que, dito de forma sucinta, refere-se a homens que vivem em corpo de mulher e mulheres que vivem no corpo de homens.

O Tribunal Constitucional Federal deu o seu veredicto, e é bom que ele tenha tomado uma decisão de forma tão clara, com sete votos contra um. Agora os políticos estão sob enorme pressão e precisam correr atrás do Conselho de Ética e do tribunal. No início dos trabalhos da nova legislatura (não importa quando isso de fato ocorra), os legisladores terão de novo a tarefa de se ocupar com uma questão ética da existência humana. Essa é uma boa tarefa.

(Com a ConJur/Deutsche Welle)

Comentários