Os comunistas que gostam do Papa. E vice-versa


                                                                   
       

13 Outubro 2017  

Nos últimos dias, em Roma, aconteceram duas coisas surpreendentes e, ao seu modo, reveladoras.

A reportagem é de Sandro Magister, publicada por Settimo Cielo, 11-10-2017. A tradução é do Cepat.

A primeira é o início da colaboração em Avvenire, o jornal da Conferência Episcopal Italiana, do cartunista satírico Sergio Staino, com uma tira dominical intitulada Hello, Jesus!.

Aqui, a surpresa está no fato de Staino ser um comunista indobrável, que foi “filho das flores” e paladino do amor livre e que foi, até há alguns meses, o último diretor de L’Unità, o finado jornal do Partido Comunista Italiano e, depois, dos partidos que lhe sucederam. É também presidente honorário da UAAR, União dos Ateus e Agnósticos Racionalistas.

O desatento Jesus de suas tiras ainda vive em Nazaré com José e Maria, ajuda a seu pai nos trabalhos de carpintaria, mas já tem a cabeça em outra parte, no momento em que irá se converter, por fim – palavras de Staino –, no “primeiro dos socialistas, o primeiro a lutar pelos pobres”.

Entrevistado pelo próprio Avvenire, no dia de sua estreia, Staino relatou que, há tempo, quando Carlo Petrini, o fundador de Slow Food, conversando com o Papa Francisco a seu respeito, em uma “longa chamada telefônica”, disse que sua mãe, no distante 1948, havia lhe negado a absolvição sacramental por ter votado no partido comunista, o Papa, rindo, soltou: “Diga à mãe desse seu amigo que essa absolvição eu a dou”.

Isto não desfaz que sua chegada ao Avennire tenha provocado um dilúvio de protestos, inclusive a do editor do jornal, o secretário geral da Conferência Episcopal Italiana, o bispo dom Nunzio Galantino. O diretor do Avennire, Marco Tarquinio, mencionou aos leitores suas palavras: “Não concordo. Não compreendo que valor as tiras de Staino acrescenta ao nosso jornal”.

E é justamente isto o que é revelador sobre este fato. Porque agora existe a prova de que o poder de Galantino na Conferência Episcopal e no jornal de propriedade desta já não conta. O mesmo ocorreu quando o Papa Francisco o nomeou secretário geral e, de fato, seu representante único, com o efeito que cada uma de suas palavras ou decisões pesava como se procedessem pessoalmente do Papa.

Hoje, a Conferência Episcopal tem um novo presidente. É o cardeal Gualtiero Bassetti, muito mais próximo a Francisco e muito mais hábil em compreender e representar seus desejos. É cada vez mais evidente que Galantino perdeu o favor do Papa e o caso Staino é a clara confirmação disto.

Não só. De fato, o diretor do Avvenire decidiu sozinho, sem ter “pedido autorização prévia ao editor”, reivindicar nas páginas do Avvenire o resultado de sua decisão e, por sua vez, tornar público o irrelevante parecer contrário de dom Galantino. Ao qual disse uma espécie de adeus, justamente no momento em que dava as boas-vindas a Staino, por sua vez “absolvido” pelo Papa Francisco.

O segundo episódio teve como protagonista outro jornal, Il Manifesto, o único que na Itália se define como “jornal comunista”.

Na quinta-feira, 5 de outubro – Que casualidade! Justamente no centenário da Revolução de Outubro! –, Il Manifesto saiu à venda, nas bancas, acompanhado de um livro com os três discursos do Papa Francisco aos “movimentos populares”, convocados por ele em Roma, pela primeira vez em 2014, em seguida, na Bolívia, em 2015, e a última novamente em Roma, em 2016.
                                                                   
Entrevistada por Avvenire, a diretora de Il Manifesto, Norma Rangeri, explicou assim a decisão:

“Sentimos como nossas estas mensagens do Papa e queremos levar a nossos leitores a radicalidade e a simplicidade de suas palavras [...]. Nelas há uma ideia nova de política: de fato, o Papa também cita Esther Ballestrino de Careaga por sua concepção da política. É uma comunista de origem paraguaia”. (E que, além disso, foi professora de química do jovem Jorge Mario Bergoglio, que recebeu a visita de suas duas filhas durante sua viagem ao Paraguai, em julho de 2015).

Dos discursos de Francisco aos movimentos populares e de sua visão política, os leitores de Settimo Cielo já foram amplamente informados.

Contudo, após sua publicação por Il Manifesto podemos obter mais informação. De fato, no livro, além dos discursos, há uma entrevista e um epílogo que enriquecem o quadro: a primeira com o argentino Juan Grabois e o segundo escrito pelo estudioso italiano Alessandro Santagata.

Grabois, de 34 anos, filho de um histórico dirigente peronista, atualmente dirige a Confederação de Trabalhadores da Economia Popular e, desde 2005, é muito próximo a Bergoglio, ou seja, desde que o então arcebispo de Buenos Aires era o presidente da Conferência Episcopal Argentina. Quando foi eleito Papa, Francisco o nomeou consultor do Pontifício Conselho Justiça e Paz, hoje absorvido no novo Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral. E é ele, Grabois, o mais ativo puxando as cordas das convocações do Papa aos “movimentos sociais”.

A ideia começou a ganhar corpo pouco após a eleição de Francisco. Após a missa inaugural do novo Pontificado - na qual estava presente na primeira fila, junto aos chefes de estado, também o argentino Sergio Sánchez, chefe do Movimento de Trabalhadores Excluídos -, Grabois disse que recebeu o contato do arcebispo Marcelo Sánchez Sorondo, chanceler da Pontifícia Academia das Ciências, também este argentino e muito impaciente para entrar no círculo dos favoritos do novo Papa.

Sorondo pediu a Grabois que lhe ajudasse a organizar no Vaticano um seminário intitulado Emergência excluídos que, efetivamente, ocorreu em dezembro de 2013 e do qual também participou João Pedro Stédile, líder no Brasil do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Este seminário foi a antessala da consecutiva primeira convocação em Roma, junto ao Papa Francisco, dos “movimentos populares”, uma rede de uma centena de siglas de todo o mundo, mas sobretudo latino-americanas e, em geral, as mesmas das memoráveis reuniões anticapitalistas e antiglobalização de Seatle e de Porto Alegre.

Para organizar tanto este como os outros encontros posteriores, foi criado um comitê formado por Grabois, Stédile e outros dois ativistas: Jockin Arputham, da National Slum Dwellers Federation, e Charo Castelló, do Mouvement Mondial des Travailleurs Chrétiens, além do jesuíta Michael Czerny, hoje subsecretário do Departamento Migrantes e Refugiados, do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, setor ao qual o Papa Francisco reservou a si mesmo a direção. Segundo Grabois, o papel do padre Czerny foi, até aqui, “de vital importância para a reunião com as diferentes organizações populares”.

No livro editado por Il Manifesto, tanto Grabois como Santagata observam que boa parte dos “movimentos populares” que conta com a confiança do Papa são críticos em relação à instituição Igreja e estão em contraste com os dogmas católicos acerca de questões como o aborto ou os direitos dos homossexuais. Contudo, “tais contradições não condicionam muito os trabalhos dos encontros, porque estes se centram em temas concretos como a luta pela terra, a casa e o trabalho”.

Estava prevista uma quarta convocação dos “movimentos populares”, em Caracas, para outubro deste ano. No entanto, foi suspensa em vista do desastre em que a Venezuela caiu.

Em compensação, começaram a ser realizados encontros em escala regional. O primeiro ocorreu em Modesto, Califórnia, de 16 a 19 de fevereiro de 2017, para os movimentos dos Estados Unidos. Outro aconteceu nos dias 20 e 21 de junho, em Cochabamba, Bolívia, para os movimentos da América Latina.

O Papa se conectou ao encontro de Modesto por videoconferência, lendo um discurso perfeitamente em sintonia com os anteriores.

Não fez o mesmo com os movimentos reunidos em Cochabamba. A respeito destas reuniões em escala regional, Santagata escreve:

“Como me aludiu [Vittorio] Agnoletto, no último encontro que ocorreu no Vaticano, foram levantadas críticas a respeito da proposta de estruturação por redes que, em sua avaliação, corre o risco de dar vida a uma série de ‘caixas vazias’ em competição com a organização do Fórum Social Mundial”.

Agnoletto, eleito, em 2004, por cinco anos ao parlamento europeu nas listas do partido Refundação Comunista, foi durante muito tempo o representante italiano no Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, nascido em Porto Alegre, e participou de diferentes encontros a respeito destes temas, no Vaticano.

Entre o Fórum Social Mundial e os “movimentos populares” amados pelo Papa Francisco há cada vez mais atrito. Segundo Grabois, o primeiro “traiu” sua essência para se transformar em uma série de rituais ou de atividades turísticas para os militantes”.

Ao passo que os segundos, os movimentos abençoados pelo Papa, são hoje os únicos capazes de “promover a organização comunitária dos excluídos, com o objetivo de construir, a partir da base, a alternativa humana a uma globalização marginalizante”. Inclusive à custa de sair dos “limites estreitos da democracia oficial” e adotar “práticas que poderiam ser consideradas  criminosas pelos Estados”.

(Com a IHU)


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