Caso Samarco: “Governo deixa responsáveis pelo rompimento da barragem tratarem as vítimas como querem”

                                                                       
Gabriel Brito (*)


"Todos os atin­gidos ti­veram suas vidas com­ple­ta­mente
mo­di­fi­cadas a partir do rom­pi­mento da bar­ragem de Fundão"

Num mo­mento em que o poder ju­di­ciário afunda ao lado das de­mais ins­ti­tui­ções na con­fi­ança po­pular, não foi sur­pre­en­dente a de­cisão que sus­pendeu o pro­cesso penal contra 21 di­re­tores do con­sórcio de em­presas que ge­ren­ci­avam a bar­ragem do Fundão, em Ma­riana-MG. A en­tre­vista com Raphaela Lopes, ad­vo­gada da ONG Jus­tiça Global, com grande his­tó­rico de acom­pa­nha­mento do setor da mi­ne­ração, elencam-se di­versos pro­blemas no tra­ta­mento que o go­verno e as em­presas dão às va­ri­adas ví­timas da tra­gédia.

“Nossa prin­cipal crí­tica à ma­neira como o Exe­cu­tivo tem atuado em re­lação às con­sequên­cias do de­sastre diz res­peito a como deixou as em­presas as­su­mirem o pro­ta­go­nismo no aten­di­mento às de­mandas dos atin­gidos. Assim, por exemplo, foram as em­presas que, desde o início, ti­veram o poder para de­finir quem é atin­gido e quem não é, além de fa­zerem exi­gên­cias es­ta­pa­fúr­dias àqueles que se de­fi­nissem como atin­gidos”, cri­ticou.

Ade­mais, Raphaela la­menta que o país não tenha am­pliado sua cons­ci­ência e atu­ação em re­lação ao ex­tra­ti­vismo mi­neral e, ao con­trário, mal se dá conta de que o cres­cente in­cen­tivo go­ver­na­mental à ati­vi­dade po­derá render novos ca­pí­tulos de des­truição am­bi­ental. 

“Com o cres­cente es­tí­mulo que o go­verno tem dado às em­presas mi­ne­ra­doras – ma­ni­fes­tado pela aber­tura de novas fron­teiras e pelos marcos tra­ba­lhistas e am­bi­en­tais fle­xi­bi­li­zados –, os con­flitos com as co­mu­ni­dades tendem a au­mentar e mais Fun­dões podem acon­tecer”, ana­lisou.

A en­tre­vista com­pleta pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como vocês re­ce­beram a no­tícia de que a Jus­tiça Fe­deral de Ponte Nova sus­pendeu o pro­cesso contra as em­presas en­vol­vidas na ope­ração da bar­ragem de Bento Ro­dri­gues e mais 22 pes­soas? 

Raphaela Lopes: Como or­ga­ni­zação não pu­ni­ti­vista, a Jus­tiça Global não acre­dita na sanção penal como so­lução para casos de vi­o­la­ções de di­reitos hu­manos. Não nos apro­fun­damos na aná­lise desta de­cisão ju­di­cial, mas o que temos acu­mu­lado é que de­ci­sões como essa apenas re­forçam o ca­ráter se­le­tivo do Di­reito Penal, na me­dida em que, ao con­trário de grande parte das pes­soas que res­pondem a pro­cessos cri­mi­nais no país, tais ga­ran­tias pro­ces­suais pe­nais ra­ra­mente se aplicam com rigor. 

O ideal não é que haja con­de­nação a qual­quer custo, pois os di­reitos dos réus pre­cisam ser res­pei­tados, mas que tais ga­ran­tias possam valer para todas as pes­soas, in­de­pen­den­te­mente de raça e classe so­cial. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Como tem sido a ba­talha por jus­tiça nos cor­re­dores do poder ju­di­ciário? Há ou­tras ações em an­da­mento contra a em­presa?

Raphaela Lopes: Há ou­tras ações cí­veis, no bojo das quais al­guns acordos estão sendo dis­cu­tidos e ce­le­brados. Nós, desde a Jus­tiça Global, vemos com muita pre­o­cu­pação a ne­go­ci­ação dos di­reitos de po­pu­la­ções atin­gidas em acordos ce­le­brados pelo Poder Pú­blico e as em­presas, sem a par­ti­ci­pação da pró­pria po­pu­lação. Tais acordos for­ta­lecem uma cor­re­lação de forças ne­ga­tiva para os atin­gidos e não ga­rantem uma re­pa­ração efe­tiva pela vi­o­lação dos seus di­reitos. 

Cor­reio da Ci­da­dania: O que a em­presa fez efe­ti­va­mente para re­parar as con­sequên­cias da tra­gédia? Como ca­minha a re­cu­pe­ração do ecos­sis­tema que vivia em torno do Rio Doce?

Raphaela Lopes: As em­presas Vale, Sa­marco e BHP Bil­liton cri­aram uma Fun­dação, a Re­nova, que tem se en­car­re­gado de gerir as res­postas em­pre­sa­riais ao de­sastre. A cri­ação da Re­nova en­con­trava-se pre­vista no acordo ce­le­brado entre as em­presas, os go­vernos de Minas Ge­rais e Es­pí­rito Santo e o go­verno fe­deral, e que está atu­al­mente sus­penso pela Jus­tiça. Sem em­bargo, a Fun­dação segue fun­ci­o­nando, sem qual­quer tipo de fis­ca­li­zação e fa­zendo ne­go­ci­a­ções pri­vadas com as pes­soas atin­gidas, as quais são assim de­fi­nidas se­gundo os pró­prios cri­té­rios da Fun­dação Re­nova e das em­presas en­vol­vidas no rom­pi­mento da bar­ragem de Fundão. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Como tem sido a vida das re­giões e po­pu­la­ções afe­tadas pelo de­sastre?

Raphaela Lopes: A re­gião afe­tada pela lama é muito grande, por­tanto, há di­fe­renças entre os atin­gidos ao longo da Bacia. Há os an­tigos mo­ra­dores de Bento Ro­dri­gues, Ges­teira e Pa­ra­catu de Baixo, que até hoje lutam pelo re­as­sen­ta­mento da co­mu­ni­dade. Há atin­gidos que até hoje lutam para serem con­si­de­rados atin­gidos e fazer jus a re­pa­ra­ções, por parte da em­presa. Há ainda os in­dí­genas, ri­bei­ri­nhos e pes­ca­dores que ex­pe­ri­mentam im­pactos es­pe­cí­ficos e lutam pela ga­rantia dos seus di­reitos. 

Todos os atin­gidos ti­veram suas vidas com­ple­ta­mente mo­di­fi­cadas a partir do rom­pi­mento da bar­ragem de Fundão, seja pela im­pos­si­bi­li­dade de ter acesso à água, seja por terem per­dido suas casas, seja por não po­derem mais pescar no rio Doce, ou por terem per­dido entes que­ridos, dentre ou­tros. 

Cor­reio da Ci­da­dania: O mi­nistro das Minas e Energia, Fer­nando Co­elho, acabou de chamar o ocor­rido de “aci­dente” em evento com em­pre­sá­rios em Nova Iorque. O que vocês co­mentam da atu­ação do go­verno bra­si­leiro em re­lação à tra­gédia?

Raphaela Lopes: Nossa prin­cipal crí­tica à ma­neira como o Exe­cu­tivo tem atuado em re­lação às conseqüên­cias do de­sastre diz res­peito a como deixou as em­presas as­su­mirem o pro­ta­go­nismo no aten­di­mento às de­mandas dos atin­gidos. Assim, por exemplo, foram as em­presas que, desde o início, ti­veram o poder para de­finir quem é atin­gido e quem não é, além de fa­zerem exi­gên­cias es­ta­pa­fúr­dias àqueles que se de­fi­nissem como atin­gidos. 

E isso se re­flete até o pre­sente mo­mento, em que o go­verno fe­deral e os go­vernos dos es­tados de Minas Ge­rais e Es­pí­rito Santo chan­ce­laram um acordo que dá às em­presas a prer­ro­ga­tiva de ge­ren­ci­arem so­zi­nhas os efeitos do de­sastre, sem uma fis­ca­li­zação efe­tiva por parte da so­ci­e­dade civil e do pró­prio Es­tado. Per­cebe-se que o pró­prio Es­tado também tem se va­lido da nar­ra­tiva de “aci­dente” para eximir-se ele pró­prio das suas res­pon­sa­bi­li­dades e es­ca­mo­tear as fa­lhas que le­varam ao rom­pi­mento da Bar­ragem de Fundão. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Como en­xerga a ten­ta­tiva de se des­blo­quear a Re­serva Na­ci­onal de Cobre e As­so­ci­ados (Renca) para a ex­plo­ração mi­neral? 

Raphaela Lopes: Trata-se, cla­ra­mente, da aber­tura de novas fron­teiras para a ex­plo­ração mi­neral, o que sig­ni­fica também pri­o­rizar os in­te­resses da in­dús­tria da mi­ne­ração em de­tri­mento dos in­te­resses de povos in­dí­genas e co­mu­ni­dades tra­di­ci­o­nais.

Cor­reio da Ci­da­dania: Mudou al­guma coisa em re­lação à re­gu­lação da mi­ne­ração? A so­ci­e­dade bra­si­leira elevou sua cons­ci­ência a res­peito do ex­tra­ti­vismo mi­neral desde então?

Raphaela Lopes: Se algo mudou em termos ins­ti­tu­ci­o­nais e nor­ma­tivos foi em novos re­tro­cessos. A mi­ne­ração con­tinua re­ce­bendo o apoio que sempre re­cebeu e con­tinua sendo uma ati­vi­dade pri­o­ri­tária na eco­nomia bra­si­leira, in­clu­sive sendo be­ne­fi­ciada por mais leis que fle­xi­bi­lizam o marco nor­ma­tivo am­bi­ental e tra­ba­lhista. O rom­pi­mento da bar­ragem de Fundão foi en­ca­rado como uma ex­cep­ci­o­na­li­dade, em um campo de ati­vi­dade econô­mica que gera muitos lu­cros para o país. Por outro lado, as co­mu­ni­dades que ha­bitam o en­torno de grandes pro­jetos de mi­ne­ração fi­caram ainda mais re­ce­osas em re­lação a um pos­sível rom­pi­mento de bar­ragem e têm se tor­nado mais crí­ticas à mi­ne­ração, co­brando, in­clu­sive, me­lhores es­tru­turas de se­gu­rança. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Como situa o de­sastre de Ma­riana com os atuais rumos do país, que podem se vis­lum­brar através de re­formas e planos de go­verno re­cen­te­mente apre­sen­tados?

Raphaela Lopes: Como or­ga­ni­zação que mo­ni­tora vi­o­la­ções de di­reitos hu­manos cau­sadas pela mi­ne­ração, so­bre­tudo da Vale, a Jus­tiça Global tem tido uma es­tra­tégia de de­mons­trar que os im­pactos ne­ga­tivos cau­sados pela mi­ne­ração vão para além das oca­siões em que algo sai di­fe­rente do es­pe­rado. Com o cres­cente es­tí­mulo que o go­verno tem dado às em­presas mi­ne­ra­doras – ma­ni­fes­tado pela aber­tura de novas fron­teiras e pelos marcos tra­ba­lhistas e am­bi­en­tais fle­xi­bi­li­zados –, os con­flitos com as co­mu­ni­dades tendem a au­mentar e mais Fun­dões podem acon­tecer.

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(*) Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

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(Com o Correio da Cidadania)

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