Medalha Cícero Ferreira será entregue hoje a Emely Vieira Salazar

                                                                                            Carol Morena 
   
         
É a primeira vez que a condecoração é entregue
a uma técnica-administrativa em Educação

A cofundadora e psicóloga do Núcleo de Apoio Psicopedagógico aos Estudantes (Napem) da Faculdade de Medicina da UFMG, Emely Vieira Salazar, será a primeira representante técnico-administrativa em educação a ser condecorada com a medalha Cícero Ferreira.  A homenagem é feita aos profissionais que mais se destacam pela dedicação e contribuições à Instituição. A condecoração será feita no dia 28 de agosto, durante a cerimônia de abertura do 4º Congresso Nacional de Saúde, no Salão Nobre da Faculdade, às 18h. Ela presidiu o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais e é membro da Comissão da Verdade de Minas Gerais.

“Quando me contaram eu não acreditei. Só de ter sido lembrada, já me senti agraciada. Acho que se deram essa chance, essa visibilidade, é porque os servidores merecem, não eu especificamente, mas a figura do servidor”, conta Emely. “Sem dúvida este é um ápice da minha vida e me deixa muito feliz”, completa.

De acordo com o diretor da Faculdade, Tarcizo Nunes, a Congregação da Instituição, também presidida por ele, é a responsável por escolher os homenageados e, nesta quarta medalha, julgaram ser pertinente entregar a um técnico-administrativo em educação. “A Emely foi a única técnico-administrativa indicada. Ela tem uma história enorme com a Faculdade, vindo trabalhar em 1958 e permanecendo até hoje. Continua vindo todos os dias, mesmo depois de aposentada, e é uma das responsáveis pelo Napem surgir”, afirma Nunes.

Ele ainda lembra que Emely trabalhou no Departamento de Cirurgia e, depois dela, “surgiu uma escola de boas secretárias”. “Ainda que fossem apresentados outros nomes de técnicos, possivelmente ela continuaria sendo a escolhida, devido a toda sua trajetória. Acho que é uma homenagem muito justa e fico feliz que ela seja durante minha gestão. Isso também ajuda a mostrar a relevância do trabalho dos técnicos-administrativos para a Faculdade”, continua o diretor.

Secretária, psicóloga, presa política, professora…

A Faculdade de Medicina da UFMG foi o primeiro e único emprego da Emely Salazar. Ela foi convidada pelo pai de uma amiga, quando ainda era adolescente, para trabalhar como secretária. Na época, trabalhava na Cruz Vermelha na parte da manhã e na Faculdade na parte da tarde.

“Antes, não queria fazer curso superior, porque achava que as pessoas ficavam diferentes, largavam a religião, viravam comunistas, etc. Mas, em 64, com o golpe, tudo foi proibido e eu não tinha mais nada para fazer, já que trabalhava em favela com alfabetização de adulto, teatro e fazia de tudo”, conta.  Como na faculdade tinha grupos com atividades como as que ela participava, decidiu fazer Psicologia na PUC, o único lugar que oferecia o curso noturno, já que trabalhava. Com orgulho ela pontua que formou sem faltar um dia de aula.

Depois de formada, ainda na vice-presidência no Diretório Central dos Estudantes (DCE), ficou sabendo que muita gente da UFMG tinha caído – expressão usada para referir a prisão -, mas permaneceu tranquila achando que, por ser da Católica, não seria afetada. Mas, um dia, ao chegar em casa, se assustou com as batidas violentas em sua porta e, ao abrir, homens uniformizados entraram trazendo um rapaz ferido e revirando toda a casa. Emely demorou a entender que se tratada do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).

“Lembro que tinha uma casa de joão-de-barro, porque gosto muito dessas coisas, e dentro dela encontraram uma bala, aí disseram que eu era terrorista. Entraram no meu quarto e pegaram a coleção de Dostoiévski, porque não podia nem ter capa vermelha”, relata. A mãe passou mal ao ver a filha sendo levada e Emely tentou acalmá-la dizendo que só iria esclarecer tudo e ser liberada. “Eu realmente acreditava nas instituições e que quem estava preso é porque tinha feito algo para isso, que inocentes não estavam na cadeia”.

Emely ficou presa por dois anos, 1970 e 71, e passou por torturas todos os dias, citando choque elétrico, telefone, palmatória e pau de arara. “As torturas que tínhamos denunciados e até as que não conhecia, eu tive a prova”, lembra. Inclusive o rapaz levado até sua casa na noite da prisão, Herculano Mourão Salazar, quem ela achava ter sido atropelado ou sofrido algum acidente, tinha sido torturado.

Ela reencontrou Herculano em uma das suas prisões, em Juiz de Fora. “Na cultura de cadeia, todo mundo tinha algum namorado do outro lado – referindo a ala masculina-. E como só conhecia o Herculano, diziam que eu era a dele”, explica. Junto às sete mulheres com quem ficou presa, fazia fila para olhar os homens por um buraco na copa e mandava recado por uma bola de vôlei, jogando ela alto o suficiente para cair até o pátio masculino. “Dizem que cadeia é uma escola e é mesmo. Até hoje meus grandes amigos são eles”, ressalta Emely.

Depois do julgamento, Herculano, que era de família rica, foi liberado para ir embora, o que só fez até ter certeza de que sua amada também receberia o alvará de liberdade. Após a liberação dos dois, Emely achou que a história do casal tinha acabado, já que estavam em liberdade e tinham idades e classes sociais diferentes. Mas ele se negou a aceitar o fim e continuou a cortejá-la por seis anos. Mesmo quando foi estudar na Europa, Herculano mandava cartas toda semana. Depois de algum tempo que voltou ao Brasil, se casaram e ele se tornou professor de Nefrologia na Faculdade de Medicina da UFMG. “Foi o melhor marido que eu poderia ter”, ressalta Emely.

A prisão da Emely, como muitas na época, não foi registrada e a Faculdade de Medicina considerou que ela tinha abandonado o trabalho. Isso dificultou sua volta à Instituição. Após comprovar que estava presa, conseguiu sua vaga e foi trabalhar na Clínica Médica. “Comecei a me sentir como se tivesse com uma doença contagiosa. Um dia encontrei um professor daqui que era muito amigo. Ele ficou feliz de me ver e convidou para ir jantar na sua casa e rever sua esposa, que também era uma amiga”, discorre. “Aí ele voltou e disse ‘é melhor não ir lá em casa não né? Você ainda pode estar sendo seguida’. Era assim que as pessoas me olhavam”, continua.

Após trabalhar no Departamento de Clínica Médica, ela foi convidada por Jayme Neves, chefe da Medicina Tropical, para ser secretária da pós-graduação que iria criar no Departamento, onde Emely ficou até 1975. Naquele ano, a então coordenadora do Napem, convidou-a para trabalhar no Núcleo. “Tínhamos vários monitores e eu atendia os que tinham algum problema. Comecei a trabalhar como psicóloga clandestinamente quando precisavam”, declara. “Depois Fui trabalhar no Colegiado e continuei atendendo-os. Toda vez que mudava a direção da Faculdade eu ia lá falar que estava fazendo esse trabalho clandestino, até ser criada uma comissão para discutir isso”, completa.

A mesma comissão criou a disciplina Tutoria, uma forma para os alunos conversarem livremente, sem pressão. “Depois vimos a necessidade de criar um Núcleo para atender esses alunos. Criamos o projeto e no final de 2004 a Congregação da Faculdade aprovou a criação do Napem, de onde não saí até hoje”, afirma Emely.

Com quase dez anos de aposentada, ela conta rindo que nem percebeu quando isso aconteceu, já que continuou a vir todos os dias e continuará enquanto tiver forças. Atualmente, atende os alunos como psicóloga do Napem e é professora da Tutoria. “A Faculdade representa a minha vida. Minha vida foi aqui dentro. A Faculdade é testemunha das minhas alegrias e minhas tristezas. De onde recordo muitos casos”, finaliza.

Medalha Cícero Ferreira

O diretor da Faculdade, Tarcizo Nunes, informa que há uma resolução da Universidade que define que cada Unidade escolha uma medalha para ser oferecida a uma pessoa de destaque, seja técnico-administrativo ou professor.

A medalha Cícero Ferreira foi criada no centenário da Faculdade de Medicina da UFMG e é destinada ao mérito profissional do servidor aposentado do corpo docente ou do corpo técnico-administrativo em educação da Instituição, sendo entregue uma única vez a cada gestão.

O processo da escolha e votação é de responsabilidade da Congregação da Faculdade de Medicina da UFMG, de acordo com o diretor. “Primeiro, eles escolhem os membros que irão compor a comissão que vai escolher quem concorre à medalha Cícero Ferreira, com base nas indicações dos Departamentos e demais setores”, conta Nunes. Na segunda parte, a Congregação indica os nomes que concorrerão à medalha. Os cinco mais bem votados são levados à Comissão, a qual escolhe o homenageado, que é dirigida pelo próprio diretor e composta por dois professores eméritos, dois titulares e um servidor técnico-administrativo em educação.


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