A cobertura da imprensa burguesa durante a Revolução Russa (III e final)

                                                                                                   Domínio Público
                               Manifestação popular durante a Revolução de Fevereiro

Eduardo Vasco

Assim como nos EUA e no Brasil, a maioria das informações que chegavam à imprensa em Portugal eram provenientes de agências de notícias ou de jornais estrangeiros.

Paulo J. A. Guinote realizou um estudo que será resumido aqui de acordo com o propósito deste artigo. Em “A Revolução Russa na imprensa portuguesa” ele examina a cobertura de diversas publicações de Portugal ao longo do ano de 1917 que abordaram a situação na Rússia. Tratando especialmente da continuação ou não desse país na Primeira Guerra, em geral os jornais portugueses viram com bons olhos a Revolução de Fevereiro, por seu novo governo ser burguês e fiel aos aliados da Entente.

“Kerensky maravilhoso” era o título do republicano unionista A Lucta de 18 de agosto. O chefe do Governo Provisório era a principal figura do regime russo para a imprensa republicana portuguesa. Por outro lado, quando se aproximava a Revolução de Outubro, o general contrarrevolucionário Cornilov era visto pelos reacionários e conservadores portugueses, seguindo seus homólogos russos e franceses, como a garantia mais segura do extermínio dos soviéticos, embora muitos buscassem uma aproximação entre ele e Kerensky.

No entanto, os chamados “maximalistas”, que apareceram nas páginas dos periódicos lusitanos somente a partir de abril/maio de 1917, foram a todo o momento retratados como antipatriotas, traidores e a serviço da Alemanha. Percebe-se, assim, um claro alinhamento das notícias com a imprensa internacional, influenciada pelos imperialismos estadunidense, francês e britânico.

Segundo Guinote (pp. 63-64), a perseguição aos bolcheviques pelos jornais portugueses ganhou força a partir de julho, após profundas agitações revolucionárias contra o Governo Provisório.

“Os elementos libertários fazem correr rios de sangue no fito de obterem da revolução os resultados máximos: a suppressão dos privilégios capitalistas, o fraccionamento do Estado, a federação das classes, a integralisação social do operariado, uma ordem de coisas, emfim, visinha do communismo”, escrevia em 9 de agosto o jornal ironicamente intitulado A Propaganda, classificando o programa dos maximalistas de “corrente anarquia”. (Obs: Neste artigo, reproduz-se as palavras e frases exatamente da forma como estão escritas originalmente nos jornais portugueses daquela época)

Sobre as agitações proletárias de julho, A Lucta publicou, no dia 31 daquele mês:

[…] Nas bolsas de muitos soldados, que assaltaram o palácio da Taurida, seguindo Lenine e Zinovieff, têm-se encontrado quantias entre 100 e 1000 rublos... De onde vinha este dinheiro? As buscas efectuadas nos domicílios de alguns leninistas permitiram averiguá-lo.

O Desconto, de Berlim, enviava a Lenine grossas somas por intermédio de um Banco de Stockolmo. O dinheiro era depositado no Banco da Siberia, uma conta corrente em seu favor de dois milhões de rublos...

A pergunta, porém, é: de onde vinha a “informação”? O jornal não dá fonte alguma, o que já levanta suspeitas. Como visto no primeiro artigo desta série, Walter Lippmann e Charles Merz relatam que as fontes do New York Times eram governos e políticos contrários à revolução socialista, além de autoridades russas do antigo regime, que plantavam boatos para serem divulgados, o que ocorria principalmente pelas agências de notícias – que eram quem alimentava as redações dos jornais portugueses.

A demonização dos bolcheviques veio, portanto, bem antes da Revolução de Outubro. Nas palavras de O Mundo de 30 de julho, “a revolução para eles é apenas a desordem, o tumulto, o ataque, a violência nos seus aspectos mais grosseiros, a vingança mais deshumana, o delírio sangrento que embriaga e estupidifica”.

O fracasso da Rússia dentro da guerra, mesmo após a Revolução de Fevereiro, foi atribuído à agitação bolchevique, especialmente a Lenin, tido como traidor e antipatriota.

Mesmo o Diário de Notícias, considerado o mais imparcial, utilizou suas páginas para caluniar o líder comunista, que queria, com a paz, “reduzir a Rússia propriamente dita à Moscóvia”, segundo o jornal. No mesmo artigo, de 21 de abril, afirmava que Lenin teve de fugir de Petrogrado por causa de sua rejeição popular.

O Trafaria de 2 de setembro declarava:

Foi Lénine o grande traidor que o império Alemão acertadamente escolheu, para vibrar o golpe na Rússia Revolucionária; ele trabalha pela Alemanha e é a seu soldo que ele organisa dentro da Rússia o partido Maximalista.

É ele que apregoa cobardia, é ele que dizendo querer uma sociedade egualitária e firmando-se em princípios socialistas, vivem principalmente em faustoso palácio, e atravessa as ruas da grande cidade moscovita em ajaezada carruagem.

E cita o Pravda, órgão do partido bolchevique: “Esse jornal que o ouro alemão, nas mãos do traidor encaminha e dirige, não poderia nunca trazer à Rússia outra coisa que não fosse a desmoralisação do seu exército.”

No entanto, foi apenas a Revolução de Outubro capaz de desnudar a verdadeira face, ultrarreacionária, de toda a direita portuguesa. De acordo com Paulo Guinote (p. 139), todos os espectros políticos em Portugal terminaram lamentando a queda do Império Russo, deixando praticamente de lado as divergências ideológicas ao longo do ano. As exceções foram os socialistas e os anarquistas.

Seja por sua ignorância ou por sua sanha de distorcer os fatos, o diário República acreditava que as massas apenas tinham assistido todos os eventos ao longo do ano, sem qualquer intervenção: “o que há de extraordinário é a passividade, a indiferença, com que a massa geral da população moscovita aceita todas essas mutações, pois que as reacções se limitam a um pequeno número de indivíduos e a uma ou outra cidade.” (Risos).

A Lucta, com seu reacionarismo palpitante, chegou a pedir o enforcamento de Lenin em sua edição de 1º de outubro, sentindo que seria a única medida que poria fim à “odiosa propaganda” desencadeada pelo movimento bolchevique desde a entrada de Lenin em cena.

Finalmente, com a grande insurreição de 7 de novembro (25 de outubro, pelo calendário russo), A Manhã afirmava que “a revolução é dirigida pelo grupo sinistro de Lenine” (12/11/1917).

A partir das notícias vindas do exterior, tentou-se apresentar a Revolução Socialista como débil.

O jornal monarquista O Liberal previa a queda do recém-instalado regime soviético, afirmando que eram “favas contadas”, somente três dias depois da tomada do poder.

“Kerenski marcha sobre Petrogrado” (12/11) e “Os maximalistas começam a perder terreno” (13/11) eram as manchetes do Diário de Notícias. “Perece estar, de facto, restabelecido o governo de Kerenski” (14/11), dizia o Século.

Uma ridícula notícia, nada apurada, aparecia no Diário de Notícias de 15 de novembro, desde Londres: “Dizem de Stockolmo, em data de ontem, ás 16 horas, que a agência telegráfica da Finlândia noticia que o sr. Kerenski é actualmente senhor de Petrogrado que está quase toda em seu poder.” E continuava: “Os jornais russos e finlandeses anunciam o próximo fim do movimento «bolchevik».”

O Século continuava a confusão: “Parece que, efectivamente, Kerensky vencerá” (16/11). Mas os sovietes continuavam no poder, o que motivou notícias sobre a situação da Rússia, dada, nesse mesmo jornal, como “angustiosa”, de “catástrofe”, “trágica”, “de mal a pior”, de “derrocada” ou então “cada vez mais embaraçada” – tudo isso num espaço de um mês.

“O sonho dos maximalistas, massas ignaras e sinceras dirigidas ou sugestionadas por agentes pagos pela Alemanha, por espiões da Wilhelmstrass é fóra de todas as rialidades”, imprimia O Mundo em 18 de novembro.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que se noticiava a derrocada do bolchevismo, nos espaços opinativos os jornais portugueses demonstravam preocupação e um certo desespero.

O mesmo O Mundo apontava, em 22 de novembro:

E desta crise provocada pelos que não se contentavam com a República democrática, que iria realizando gradualmente as reformas sociais, sairá por certo o ditador que sufocará em sangue as manifestações e organizará violentamente o Estado, com os meios liberticidas construindo um edifício novo, que será necessário destruir outra vez.

Alguns jornais voltavam-se diretamente para a classe trabalhadora portuguesa, com medo de que a Revolução de Outubro inspirasse um levante popular também em Portugal.

Operários de Portugal olhai a lição russa! Cautela! Não é a primeira vez que o inimigo faz dos grandes princípios um uso, pelos seus efeitos, análogo ao dos gases asfixiantes das granadas peçonhentas. Cautela! Há sugestões que matam e a russa é uma delas! (…) Operários de Portugal, olhai a lição russa! Há sugestões que matam e a maximalista é uma delas.” (A Fronteira, 03/03/1918)

E as calúnias contra a revolução proletária continuavam. “Lénine, a alma infernal da contra-revolução, que é tanto criminoso como traidor”, esbravejava O Trafaria, em 1º de dezembro. No dia 17 do mesmo mês, o República chamava Lenin de “fanático agitador”, cuja razão “ignora a realidade”. Trotsky aparecia pela primeira vez em destaque no Diário de Notícias em 18 de dezembro: “O russo Torotsky [sic] ameaça com a guilhotina.”

Após a assinatura do armistício com as potências centrais da Primeira Guerra, o qual os jornais portugueses não colocavam esperança, o República (em 16 e 28 de dezembro) amaldiçoava o futuro da Rússia: “A obra nefasta dos traidores a soldo da Alemanha” irá “aniquilá-la” e “A catástrofe será espantosa.”

A Verdade, jornal católico integralista dos Açores, chamou, em 12 de dezembro, de “cataclysmo russo” a revolução bolchevique. Dizia o diário que tal acontecimento arrancaria todos os direitos constituídos, “desde o direito fundamental e primário da propriedade” e que era uma “tragédia” que estava “ensanguentando a Rússia”. “É a orgia demagógica no seu auge, com a divisão das terras pelos camponezes, a deserção militar em massa”, continuava. “Não há dúvida que estamos assistindo […] a maior catastrophe que a história universal tem registado”, lamentava o jornal.

No mesmo artigo, a exemplo do que propagandeava a imprensa ocidental, A Verdade pedia a intervenção imperialista para derrubar a Revolução:

Se ao cataclysmo russo não corresponder e depressa uma contra-reação conservadora internacional, o perigo slavo – que já não é o do tzarismo, mas o do anarchismo – dominará todos os outros perigos mais ou menos imaginários e o slavismo revolucionário precipitará a Europa no chaos e entregal-a-ha, calcinada, afinal, ás ambições insaciáveis... do Novo Mundo!

Desse modo, parece claro que, assim como a imprensa estadunidense e a brasileira, em Portugal a campanha contra o “perigo vermelho” e pela intervenção também foi executada pelos veículos de notícias. Paulo Guinote lembra que, apesar de pouco destaque durante o ano de 1918 devido ao desfecho da guerra mundial, a Rússia voltou às páginas dos jornais portugueses em 1919, “em grande parte devido ao receio que, findo o conflito mundial, o movimento revolucionário viesse a alastrar para o exterior, para o Ocidente” (p. 151). Por isso, a imprensa pedia a intervenção estrangeira, “como forma de pressão sobre o novo executivo russo” (p. 73), o que não deixou de ocorrer, todavia, durante os próprios acontecimentos de 1917.

Percebe-se, portanto, pelo que foi analisado nesta série de artigos, que a campanha contra os bolcheviques foi orquestrada amplamente pelos governos imperialistas (como os EUA) e as burguesias a eles submetidas (Brasil e Portugal) por meio da veiculação de notícias e informações falsas ou profundamente enviesadas e de opiniões que repudiavam veementemente qualquer tomada do poder pelas massas oprimidas.

Essa campanha organizada pode ser percebida especialmente a partir de quatro assuntos recorrentes na imprensa desses países: a prioridade em manter a Rússia na guerra contra a Alemanha, os anúncios da queda iminente do governo bolchevique, a necessidade de intervenção imperialista e o “perigo vermelho” que passou a ameaçar o mundo com a Revolução.

Também percebe-se que os jornais portugueses eram mais opinitativos do que o New York Times. O diário estadunidense, por outro lado, difundiu sistematicamente mentiras grotescas contra a Revolução de Outubro. 

Tradicionalmente, desde aquela época, o jornalismo norte-americano se caracteriza por uma objetividade maior do que o europeu. Isso, no entanto, nunca foi um entrave para a propaganda anticomunista – pode-se noticiar mentiras objetivamente, selecionar o que é de interesse para quem controla o jornal e também reproduzir opiniões de “fontes” e “especialistas” fingindo que não são as do jornal.

Já a imprensa brasileira, pelo material verificado, equilibrou artigos noticiosos com opinativos. Mas mesmo as “notícias” eram negativas (e distorcidas) em relação aos bolcheviques, e as opiniões os demonizavam.

No ano do centenário da revolução que indicou o caminho para a luta da classe trabalhadora, deve-se recordar também que a burguesia utiliza todos os seus métodos de dominação para tentar suprimir o direito do povo de se rebelar e para esmagar qualquer insurreição. Tanto pela força dos canhões como pelo poder de difusão das mentiras e ideias ultrapassadas que mantêm o sistema de exploração de pé. E a imprensa capitalista serve a esse objetivo.

Referências:

GUINOTE, Paulo J. A. “A Revolução Russa na imprensa portuguesa”. 1991 ou 1992. Seminário (Mestrado de História do Século XX), FCSH – Universidade Nova de Lisboa. In: O Umbigo Ao Quadrado. Disponível em: . Acesso em: 29 dez. 2016.

(Com o Diário Liberdade)

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