A Cobertura da imprensa burguesa durante a Revolução Russa (I de III)



                                               Bibliothèque nationale de France (Domínio Público)
"Longa vida ao proletariado mundial", cartaz em manifestação operária durante a Revolução Socialista

Eduardo Vasco

Há cem anos começava o maior processo de transformação social já visto na história da humanidade. A Rússia, em meio à Primeira Guerra Mundial, com seus soldados morrendo no front, seus camponeses morrendo no campo e seus operários sobrevivendo como podiam na cidade, viu o czarismo entrar em crise e ser derrubado pela Revolução de Fevereiro.

Um governo burguês, não mais monárquico, tomou conta do país. Mas, ao contrário do que havia prometido à classe trabalhadora que apoiara a queda do czar, continuou praticamente com as mesmas políticas: permanência da Rússia na guerra, concentração da terra nas mãos de poucos e domínio das indústrias pelos capitalistas.

Em outubro, finalmente, após meses de crise do Governo Provisório, os bolcheviques lideraram a tomada do poder pelos explorados, sob a organização dos sovietes.

Todo esse período foi acompanhado de perto pela imprensa mundial. Os maiores jornais dos grandes centros enviavam seus correspondentes, mas a cobertura foi feita principalmente pelas agências de notícias internacionais, que alimentavam tanto os grandes como os pequenos jornais.

O principal meio impresso já era, naquela época, o estadunidense New York Times. Seja por meio de matérias próprias ou de agências noticiosas, esse jornal cobriu amplamente os eventos na Rússia. Naquele tempo, como hoje, as distorções e manipulações das notícias já eram praticadas sem qualquer pudor.

Nesta primeira parte do artigo será descrita a atividade do New York Times sobre os acontecimentos na Rússia, com base na pesquisa intitulada “A Test of the News” (1920), de Walter Lippmann e Charles Merz, em que analisaram a cobertura diária do Times entre março (fevereiro no calendário russo de então) de 1917 e março de 1920 acerca da Revolução Russa.

Eles examinaram todo o conteúdo que esse jornal publicou sobre a Rússia naquele período (entre 3 e 4 mil matérias) e concluíram: o noticiário foi impregnado por uma “propaganda organizada pela intervenção” imperialista no país eurasiático (p. 3).

Influenciadas pelas autoridades russas do antigo regime instaladas nos EUA e na Europa Ocidental, assim como pelo Departamento de Estado, as notícias batiam principalmente em duas teclas: até o término da gerra, a intervenção estrangeira na Rússia era necessária para acabar com o “perigo alemão”; mas a intervenção continuou mesmo após o armistício, com a desculpa de combater agora o “perigo vermelho”.

As potências imperialistas Aliadas (EUA, França e Grã-Bretanha) estavam preocupadas com a possível saída da Rússia da guerra, e ficaram ainda mais após a Revolução de Outubro (a qual as notícias a todo o momento procuraram desacreditar). O interesse era derrotar a Alemanha e todas as chantagens foram usadas para que a Rússia não saísse da guerra, pois era aliada daqueles países e sua saída favoreceria a Alemanha, segundo propagandeavam. Portanto, a intervenção seria necessária para impedir que o Kaiser tomasse conta do maior país do mundo.

O noticiário afirmava que a situação após outubro (no calendário russo; novembro, no ocidental) era de caos gigantesco e que os sovietes não tinham condições de controlar a Rússia. Assinalam Lippmann e Merz (p. 10):

A questão da estabilidade do regime bolchevique obviamente é uma questão fundamental do noticiário sobre a Rússia. […] Porque se o regime fosse temporário, então sua diplomacia contra a Alemanha e os Aliados não seria particularmente significativa, a possibilidade de intervenção bem-sucedida seria maior, as perspectivas dos generais brancos seriam mais vivas, a ameaça seria menor e o problema da paz poderia ser adiado. 

Se, por outro lado, o poder soviético estivesse firmemente enraizado no povo russo, então ele seria a Rússia e sua diplomacia importaria muito, a intervenção seria impraticável, as perspectivas dos generais seriam ruins, a ameaça mereceria séria consideração e a paz uma importância urgente.

Durante o “perigo alemão” eram comuns no New York Times afirmações como “Alemães comandam o Exército Bolchevista” ou “Bolcheviques fornecem as riquezas russas para Berlim”.

Tanto antes quanto depois da assunção de Lenin e seus camaradas ao poder, eles foram demonizados nas páginas do jornal. “Lenin e Trotsky são extremamente impopulares”, declarava ao NYT um diplomata estadunidense dois dias após a tomada do poder, e afirmava que havia uma “execração popular dirigida contra Lenin”. 

Em novembro de 1918 era relatado o depoimento de um homem de negócios francês, dizendo que ficara preso por três meses nas prisões russas e que o país era um “paraíso de idiotas”. Um alto funcionário da embaixada russa denunciava que os bolcheviques “forçavam oficiais e funcionários do antigo regime a trabalhar para eles sob pena de morte”.

Boatos ou mesmo afirmações de que o regime socialista cairia dentro de poucas semanas foram recorrentes em todo o noticiário do Times sobre a Rússia naquele período, mais do que qualquer outra notícia. Entre novembro de 1917 (mês da Revolução) e novembro de 1919, a inevitável ou concretizada queda do governo bolchevique foi anunciada em 91 ocasiões.

Em quatro ocasiões se noticiou que Lenin e Trotsky estavam planejando fugir e em três oportunidades foi noticiado que eles já haviam fugido. Três vezes o jornal declarou que Lenin havia sido preso, além de ter planejado se retirar do governo e até mesmo que tinha morrido!

Em 18 de janeiro de 1918 apareciam as seguintes chamadas: “Rússia à beira do colapso – Petrogrado enfrenta fome e paralisia, enquanto a anarquia reina nas províncias” e “Crime está desenfreado em Petrogrado: roubos, assaltos e assassinatos são comuns – alimentos são distribuídos”. 

Esse tipo de “notícia” permeou as páginas do jornal em questão durante todo o período. Na verdade, eram boatos plantados cuja maioria das fontes descritas pelo New York Times era identificada apenas como “diplomatas bem informados”, “oficiais aliados” ou “especialistas”, mas os discursos eram provenientes de governos, círculos ao redor de governos e líderes políticos contrários à Revolução, além de os correspondentes escreverem de acordo com suas simpatias políticas (pp. 40-41).

O mesmo vale para as matérias sobre a luta interna entre os revolucionários e os contrarrevolucionários. Estes últimos formaram o Exército Branco, apoiado pelas potências imperialistas e cujos líderes destacados pelo NYT foram Kolchak, depois Denikin e finalmente Yudenich. Era pedido apoio estrangeiro aos brancos, que eram considerados pelo Times como os “leais filhos da Rússia”.

O público leitor do New York Times provavelmente pensava que as forças reacionárias detinham a posse de quase todo o território russo e eram apoiados pela maioria da população, porque, somente no ano de 1919, esse jornal publicou 16 artigos com declarações de apoio a Kolchak por parte de instituições russas. Por outro lado, os sovietes eram impopulares e, como sempre, passavam por grandes dificuldades.

“A situação em Moscou e Petrogrado se tornou tão séria que deverá ocorrer um levante popular contra todo o regime bolchevique” devido ao avanço das tropas de Kolchak, estampou o Times em 3 de abril de 1919. Mas o fato é que seus homens não conseguiram derrubar a Revolução.

Após Kolchak, veio Denikin, cujas tropas venciam batalha atrás de batalha e estavam nos arredores de Moscou, segundo a ficção vendida pelo jornal. A realidade, no entanto, era outra: a distância para a capital era de 603 quilômetros. O máximo que as tropas de Denikin chegaram de Moscou foi 320 quilômetros.

Yudenich, então, chegou para destruir os bolcheviques. Em outubro de 1919, quatro edições consecutivas do NYT anunciaram que os contrarrevolucionários haviam tomado Petrogrado. Mais uma mentira deslavada. Assim como seus antecessores, Yudenich não tinha apoio popular suficiente e não foi rival para o poder soviético: caiu oficialmente em fevereiro de 1920.

Petrogrado também teria caído, antes, diante de tropas finlandesas, estonianas e letãs, segundo o mesmo jornal. O que, obviamente, nunca aconteceu.

A Rússia foi uma vez mais atacada, agora diretamente a partir do exterior. O exército polonês adentrou quase 300 quilômetros em território russo e aí permaneceu por mais de um ano. A partir de julho de 1920 o Exército Vermelho contra-atacou. Porém, a imprensa estadunidense, em geral, retratou a contra-ofensiva soviética como uma “agressão” (p. 35). 

Um exemplo: em 3 de março de 1920 o Times reproduzia declaração de Lenin que dizia que “se o agressor polonês invadir nosso país, vamos dá-los um golpe que não será esquecido” sob o título “Lênin ameaça a Polônia” (!).

Esse tipo de manchete foi comum nos momentos em que se falava do “perigo vermelho”: logo após o final da Primeira Guerra e quando os bolcheviques estavam prestes a vencer a Guerra Civil.

Em 21 de novembro de 1918, um correspondente alertava desde Berna que a greve geral de três dias desencadeada na cidade fora organizada por “agentes bolcheviques na Suíça” com a finalidade de estourar uma “revolução sanguinária, esperando estendê-la para os países vizinhos, Itália e França”. 

Um despacho da agência Associated Press de 22 de dezembro dizia que estava sendo executada uma campanha para exportar o bolchevismo para os EUA, que envolvia muito dinheiro. Em 30 de dezembro o título de uma matéria advertia: “Ameaça ao mundo pelos vermelhos”.

“Lenin ameaça a Índia”, era a manchete de uma notícia de novembro de 1919 sobre conversas entre o líder soviético e comunistas do Turquestão que abririam “o caminho para uma luta contra o imperialismo universal encabeçado pela Grã-Bretanha”, segundo a carta enviada por Lenin.

Mais tarde, em fevereiro de 1920, o mesmo assunto: “Vermelhos reforçam exército para atacar a Índia”, em artigo dizendo que os bolcheviques estabeleceriam bases militares no Turquestão “para uma campanha contra a Índia”. Era baseado em uma declaração do Departamento de Estado dos EUA que apontava como fonte da informação uma mensagem interceptada de Moscou para Tashkent que não falava nada de militarismo ou de ações fora do Turquestão, segundo Lippmann e Merz (pp. 39-40).

Entre o final de 1919 e o começo de 1920 começou a se falar em ameaça bolchevique contra o mundo inteiro: Estados Unidos, Europa Ocidental e Oriental, Oriente Médio e Ásia. “Vermelhos procuram guerra contra a América” e “Medo que os bolcheviques agora invadam o território japonês” foram algumas das manchetes do NYT.

A cobertura do New York Times a respeito da Revolução Russa de 1917, como se pode ver, foi nitidamente tendenciosa e em vários momentos distorceu informações ou simplesmente mentiu sobre o que ocorria na Rússia. Porém, não foi de um nivel profissional de propaganda que começamos a ver durante a “Guerra Fria” contra a própria União Soviética e os países que buscaram a libertação do imperialismo e do capitalismo e que vemos nos dias de hoje. Mas ela inaugurou um estilo de noticiário que foi se aprimorando para combater ideologicamente e preparar o terreno para futuras intervenções políticas, econômicas e militares.

No próximo artigo, veremos uma descrição da cobertura da imprensa brasileira sobre a Revolução Russa, que completa seu centenário este ano.

Referências:

LIPPMANN, Walter; MERZ, Charles. “A test of the News”. In: Internet Archive. The New Republic, Nova Iorque, vol. 23, n. 296, 4 ago. 1920. Suplemento. Disponível em: . Acesso em: 27 dez. 2016.

(Com o Diário Liberdade)

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