Escolas sem política, tribunais com crucifixos

                                                                        

Henrique Júdice (*) 

A falência moral do Estado brasileiro, tanto mais por arrastar a ala esquerda de seu sistema de poder, tem como efeito colateral o aferramento de parte hoje expressiva das classes médias a bandeiras ultraconservadoras. Positiva como qualquer tomada de consciência, a constatação de que a política institucional se resume hoje a uma disputa de máfias tem levado muita gente ao erro de buscar nas igrejas – partícipes destacadas desse jogo – uma referência moral.

Dois acontecimentos recentes ilustram a desorientação. Um é a torpe tentativa de banir da escola (espaço de socialização e debate público por excelência) a discussão político-ideológica. O outro é a recolocação de crucifixos (símbolos de crença religiosa, algo íntimo e pessoal por definição) em salas de julgamentos e audiências por ordem do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Nessa perspectiva, a política deve ser banida dos espaços de sociabilidade e a religião deve presidir os recintos de exercício do poder estatal.

A extrema-direita é estúpida o bastante para acreditar que aulas de História, Filosofia e Sociologia (seus alvos preferenciais, embora já tenha sobrado até para a Física Quântica), são, pelos conceitos e conteúdo trabalhados, aulas de comunismo. E mais estúpida ainda por crer que tendo o comunismo como disciplina escolar, as crianças aderirão a ele.

A escola, onde elas passam 4 horas por dia, 5 dias por semana, 9 meses por ano, é o âmbito de menor influência na formação de suas personalidades e valores – infelizmente, pois, mesmo péssima, ela quase sempre é melhor que os ambientes onde essas mesmas crianças e adolescentes passam as outras 20 horas do dia (família, igreja, vizinhança).

Para os adolescentes, pesa mais o que veem do que o que ouvem: na ótima escola em que cursei o 2º grau, a construção do conhecimento de ciências naturais – baseada em experimentos, observação e reflexão sobre o observado – nos ensinou mais que as (boas) aulas de ciências humanas os saudáveis hábitos da contestação e da desobediência. Além disso, adolescentes tendem a recusar imposições. Tanto é assim que das escolas católicas – voltadas, elas sim, à doutrinação – saem mais ateus que das públicas.

A impessoalidade esgrimida para interditar o aprendizado de conteúdos escolares é descartada quando se trata de impor a juízes, advogados, partes, testemunhas e funcionários a presença de um símbolo religioso nos locais onde trabalham ou se decidem causas com impacto sobre suas vidas, liberdades e patrimônios. A pretexto de não violar consciências, um(a) professor(a) não pode mencionar em aula a existência de classes sociais ou fenômenos como o imperialismo. Já sobre os partícipes de processos judiciais (inclusive o juiz), deve recair o peso do Estado em favor de uma crença religiosa, mandando-se ao diabo a neutralidade.

Foi o que o conselheiro Emmanoel Campelo, designado para o CNJ por Dilma Rousseff em 2012 e em 2014, determinou em maio último, ao ordenar a recolocação dos crucifixos que o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul havia retirado de suas dependências. O CNJ já autorizara outros tribunais a manter tais símbolos, mas nunca antes obrigara um a tê-los em suas paredes. Os demais conselheiros não chegaram a votar porque o presidente do Tribunal de Justiça gaúcho, Luiz Felipe Difini, não recorreu da decisão, preferindo receber as associações dos Juristas Católicos do Rio Grande do Sul (AJCRS) e dos Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE) para encetar seu cumprimento.

É questionável a licitude de juízes e promotores se agruparem com base em confissão religiosa. E não se sabe qual a legitimidade da ADCE, que aglutina o que há de mais obscurantista no empresariado e no catolicismo (Opus Dei, cursilhos de cristandade), para interferir na administração judicial.

Mesmo não endossando expressamente a assertiva de que “a ausência do Crucifixo poderá acarretar descrédito, por parte da população cristã, às decisões judiciais, podendo até levar ao fim o Regime Democrático”, como alegado pela diocese de Passo Fundo e pelo ex-deputado do PDS Fernando Carrion, Campelo acatou a tese de que a presença dele em órgãos judiciais não denota privilégio a uma religião, mas sua retirada “é ato eivado de agressividade, intolerância religiosa e discriminatório, já que atende a uma minoria, que professa outras crenças”, como sustentava o outro requerente, o deputado pelo DEM Onix Lorenzoni.

Campelo embasou sua decisão também num escrito do ex-ministro da Justiça, ex-senador e ex-ministro do STF, Paulo Brossard, para quem “estamos a viver tempos do Apocalipse”. Disso seriam indícios a retirada dos crucifixos e “a circunstância de ser uma ONG de lésbicas que tenha obtido a escarninha medida” (na verdade, a laicização dos espaços judiciários havia sido pedida por seis entidades, apenas uma representativa de mulheres homossexuais).

A decisão se reporta, ainda, ao seminário “O Estado laico e a liberdade religiosa”, promovido em 2011 pelos catolicíssimos Cezar Peluso (então presidente do CNJ) e Ives Gandra Martins Filho (membro supernumerário da Opus Dei, então conselheiro). As conclusões do evento reduzem a laicidade constitucional à simples separação formal entre Estado e igrejas. Não reconhecem sequer obrigação de neutralidade estatal plena quanto às diversas religiões, só não se admitindo a proibição de alguma delas, embora sim o favoritismo da católica por “razões históricas e culturais”.

Nesse mesmo seminário, Gandra Filho defendeu o ensino confessional, afirmando que “a escola é a extensão da família, e os pais querem que os filhos recebam valores religiosos”. À parte a inversão conceitual – já que a escola se destina exatamente à socialização extrafamiliar das crianças, não lhe cabendo ensinar o que os pais querem, e sim o que os filhos precisam –, fica a dúvida sobre como isso se coaduna com a bandeira da suposta neutralidade do ensino, desfraldada pelo mesmo campo ideológico.

O melhor dos argumentos de Campelo, também extraído do artigo de Brossard, é que Jesus Cristo “foi vítima da maior das falsidades de justiça pervertida”. Embora – ao contrário do que querem ambos –,  não descaracterize o crucifixo como símbolo religioso nem legitime sua presença (quanto mais compulsória) em espaços estatais, isso é verdade.

À luz de tal critério, o Judiciário (e por que não as escolas, se a conotação é tão neutra?) deveria ter imagens de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, Julius e Ethel Rosenberg, Mumia Abu Jamal, Joe Hill e Olga Benario (quem sabe também de Elisa Quadros, Igor Mendes ou Rafael Braga Vieira?), sem que isso seja considerado proselitismo. Quem sabe também dos prejudicados pelas tramoias judiciais da Opus Dei e, claro, todas as vítimas da Inquisição?

(*) Henrique Júdice Magalhães é jornalista, ex-servidor do INSS e pesquisador independente em Seguridade Social. Porto Alegre (RS).

 (Com o Correio da Cidadania)

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