Argentina depois de Macri: a marcha apressada do capitalismo mafioso

                                                                 

 Jorge Benstein (*)

Na Argentina, começou a conformar-se um regime autoritário com aparência constitucional. Uma convergência mafiosa de setores empresariais, judiciais e midiáticos monitorados pelo aparato de inteligência dos Estados Unidos. Mas o que demonstram os primeiros meses do processo é que a grande tentativa tropeça em numerosas dificuldades, que ameaçam transformá-la em uma gigantesca crise de governabilidade. O contexto de seu desenvolvimento é uma recessão econômica que vai se aprofundando na direção da depressão, de um funcionamento econômico de baixa intensidade, com altas taxas de desemprego, salários reais muito reduzidos e baratos em dólares.

Não se trata do retorno do velho neoliberalismo dos anos 90, muito menos de uma imitação do regime oligárquico dos finais do século 19, mas a tentativa de instauração de um sistema mafioso, que parasita sobre uma população desarticulada, alberga grandes espaços de marginalidade e superexploração laboral, realizando um saque sem precedentes de recursos naturais.

Nessa direção, vão sendo impostos os instrumentos essenciais do regime ditatorial: controle completo dos meios de comunicação, reconversão integral do sistema de segurança como apêndice dos Estados Unidos (1), implantação de mecanismos de destruição econômica e social de grande escala e desdobramentos midiático-judiciais que tendem a extirpar as oposições que não se subordinem ao novo regime.

Submissão colonial e decadência periférica

O tempos mudaram, a “doutrina da segurança nacional” vigente na época de Videla e Pinochet coincidia com a visão militar-profissional do Império, se tratava do controle milimétrico da sociedade colonizada, administrada como um quartel, que coincidiu historicamente com a última etapa do predomínio dos Estados Unidos do “complexo militar-industrial” tradicional – a aliança entre a grande indústria armamentista e os altos comandos militares, subordinados às elites políticas. Resultado do keynesianismo militar que marcou a superpotência desde a Segunda Guerra Mundial e entrou em declínio nos anos 80 (2).

Mais adiante, o “Consenso de Washington” reinou durante a era de Carlos Menem na Argentina e de Collor e FHC no Brasil, sinalizando o auge da financeirização da economia e da política dos Estados Unidos e do conjunto de potências dominantes, sem deixar de lado o componente militar que começou a transformar-se.

Esses dois momentos trágicos expressaram a afirmação da submissão colonial da Argentina. Primeiro com formato militar-ditatorial. Em segundo lugar, com rosto civil-constitucional, que se corresponde com diferentes configurações imperialistas: no primeiro caso com um imperialismo norte americano industrial ascendente, disputando a Guerra Fria, e em segundo lugar com a presença da única superpotência global, que vinha de ganhar essa guerra e se prestava a exercer a hegemonia planetária. 

Ainda ao mesmo tempo, financeirizavam-se as economias; o parasitismo começava a corroer o sistema e a degradar seus pilares produtivos, instalando a cultura do consumismo desenfreado. Tal prosperidade insana contagiou as elites periféricas e nos Estados Unidos a festa se converteu em uma onda militarista a partir de 2001. A megabolha financeira explodiu em 2008 e na Argentina o show desembocou em recessão, que por sua vez culminou com um grande desastre econômico, social e institucional ainda em 2001.

A atual submissão Argentina aos Estados Unidos não se corresponde com um tipo de auge do Império, mas com sua decadência, sua degradação econômica e social e seu retrocesso geopolítico internacional, que busca ser compensado mediante o controle total de seu quintal latino-americano, a fim de assegurar a superexploração de recursos naturais decisivos, mas também para introduzir a região como peça própria de seu jogo global. Como sinal para seus sócios europeus na OTAN ou como retaguarda segura na armação do “Acordo Transpacífico”.

É um império comandado por uma lumpenburguesia financeira, sobrevivendo com baixas taxas de crescimento produtivo, parasitando sobre o resto do mundo, que não busca instaurar uma hierarquia mundial estável reproduzindo-se em longo prazo, mas apenas  depredar recursos naturais, degradar ou eliminar Estados e destruir defesas sociais periféricas, estendendo ofensivas desestruturantes e desintegradoras de identidades nacionais e culturais. Seu instrumento de intervenção militar é agora uma constelação de organizações guiadas pela doutrina da Guerra de Quarta Geração (3): emprega de maneira intensiva mercenários, com operações clandestinas de sua estrutura profissional, redes mafiosas, manipulações midiáticas e outras atividades destinadas a trazer o caos e destruir espaços periféricos com o fim de saqueá-los.

Em correspondência ao fenômeno, as burguesias latino-americanas foram mudando até a chegarem à situação atual, onde grupos empresariais, financeiros ou do agronegócio combinam seus investimentos tradicionais com outros mais rentáveis, porém, mais voláteis: aventuras especulativas, negócios ilegais de todo tipo (desde o narcotráfico até operações imobiliárias opacas, passando por fraudes comerciais, fiscais e outros empreendimentos turvos), transnacionalizando-se e convergindo em “investimentos” saqueadores provenientes do exterior. No caso argentino, poderíamos encontrar antecedentes no reinado da “pátria financeira” durante a última ditadura militar, que por sua vez tem de ser visto como resultado do fim da era industrial.

Em síntese, a configuração lúmpen-imperialista impõe dinâmicas decadentes na periferia do mundo. Na América Latina, chegou a hora do “lumpencapitalismo”, direção para a qual as elites argentinas já vinham avançando. A chegada de Macri à presidência expressa um enorme salto qualitativo, o país em seu conjunto acaba de ingressar de maneira recarregada e brusca nesse processo.

Recessão, depressão e economia de baixa intensidade

Recentemente, o FMI prognosticou para a Argentina um crescimento econômico real negativo em 2016, da ordem de 1%. Quando observamos as quedas já produzidas em indicadores decisivos desde dezembro de 2015 é possível diminuir ainda mais essa cifra, até 3% negativos, ou ainda pior.

Foi produzida em muito pouco tempo uma forte redução dos salários reais, causada entre outros fatores pela mega-avaliação, aumentos de preços dos combustíveis e das tarifas de eletricidade, gás e transportes, eliminação ou redução de retenções e seus impactos inflacionários, ao que se agrega a subida das taxas de interesse e das demissões em massa na administração pública (que começam a ser seguidas pelo setor privado), com os quais temos um panorama recessivo provocado pelo governo, cujo objetivo principal é reduzir salários reais e seu valor em dólares.

A avalanche de mudanças desatou em alguns círculos o debate em torno do suposto “modelo de desenvolvimento” que a direita estaria tentando impor. Decretos, endividamentos, altas de preços e demissões se sucederam de maneira vertiginosa; buscar-lhe coerência estratégica a essa conjunto é uma tarefa árdua que a cada passo impõe mais contradições, que obrigam a descartar hipóteses sem que se possa chegar a uma conclusão minimamente rigorosa.

Em primeiro lugar, a contradição se encontra entre medidas que destroem o mercado interno para favorecer uma suposta onda exportadora, evidentemente inviável diante do recolhimento da economia global. Outra é o aumento das taxas de juros que comprimem o consumo e os investimentos à espera da chegada de fundos provenientes de um sistema financeiro internacional em crise, no qual quase a única coisa a brindar é a armação de manobras especulativas.

Alguns optaram por resolver o tema adotando definições abstratas tão gerais quanto pouco operativas (“modelo favorável ao grande capital”, “restauração neoliberal” etc.), outros decidiram seguir o estudo, mas cada vez que chegam a uma conclusão satisfatória aparece um novo feito que os joga da janela do edifício intelectual construído. Finalmente, uns poucos, entre os quais me encontro, temos chegado à conclusão de que buscar essa coerência estratégica constitui uma tarefa impossível.

A chegada da direita ao governo não significa a substituição do modelo anterior (desenvolvimentista, neokeynesiano ou como queira ser qualificado) por um novo modelo (oligárquico) de desenvolvimento, mas simplesmente o desenrolar de um gigantesco saque protagonizado por forças entrópicas altamente destrutivas que convertem o país burguês em uma república de bandidos.

Isto deveria nos levar a uma reflexão sobre o significado do fim da era kirchnerista, visualizado por alguns como um tropeço, resultado de uma derrota eleitoral por escassa margem e por outros como produto de uma manipulação midiática prolongada, combinada com operações da máfia judicial, de grupos econômicos concentrados e do aparato de inteligência dos Estados Unidos. Esta última avaliação está mais próxima da realidade, porém, ainda é insuficiente. O “golpe branco” existiu (o que pulveriza a presunção de legitimidade democrática do governo atual), mas ainda falta explicar porque foi exitoso.

Razões

Se nos limitarmos a certos aspectos econômicos do tema, podemos observar que o “motor externo” começou a esfriar desde 2012, depois da breve recuperação da recessão global de 2009. A situação se agravou desde a metade de 2014, quando os preços das commodities caíram e a economia passou a uma etapa de crescimentos anêmicos sustentados pelo mercado interno. Os grandes exportadores aumentaram a pressão destinada a obter, na economia nacional, benefícios que lhes permitissem compensar as menores taxas externas, convergindo com interesses financeiros e agrupando o conjunto da direita midiática, judicial e política. Tratou-se de uma corja que foi tornando-se cada vez mais válida, na medida em que seu inimigo perdia espaço econômico e se acentuava a crise global.

Os equilíbrios do governo foram cada vez mais instáveis, as comportas neokeynesianas que bloqueavam a maré começaram a sofrer fissuras para finalmente desmoronarem. A candidatura presidencial de Daniel Scioli foi uma opção defensiva e débil, que não pôde evitar a queda. Assim, foi desatada a recessão e diversos sinais nacionais e internacionais nos indicam que ela veio para ficar. Encontramo-nos diante do início de uma depressão econômica resultado da reprodução de um sistema que ingressou em uma fase de contração desordenada.

Uma referência importante é a da saída da recessão produzida desde 2003. Nesse período convergiram dois fatores principais: o aumento do preço internacional das commodities e a reanimação do mercado interno.

O “motor externo” foi impulsionado pelo auge de mercados emergentes, como os da China ou Brasil, entre outros, o que permitiu uma melhora substancial das contas externas da Argentina. Os preços das commodities experimentaram subidas notáveis nesses anos, impulsionadas não só pela expansão da demanda internacional, mas também pelo crescimento da especulação financeira. As operações globais com produtos financeiros derivados e baseados em commodities chegavam, em dezembro de 2003, a 1,4 bilhão de dólares; em dezembro de 2005 alcançavam os 5,4 bilhões e em junho de 2008 os 13,1 bilhões de dólares (4).

Por sua vez, o “motor interno” funcionou empurrado pela ascensão do pleno emprego, dos salários reais e da renda das classes médias. Como consequência, expandiram-se a demanda interna e o tecido industrial, a economia argentina se recuperou e cresceu a taxas excepcionais. Como é sabido, o salário real médio experimenta na Argentina uma tendência decrescente de longo prazo (desde meados dos anos 70), sofreu uma queda descomunal durante a crise dos anos 2001-2002, depois se recuperou par os níveis dos anos 90, mas sem alcançar nunca os dos anos 70, nem sequer os dos anos 80 (5). Poderíamos resumir o sucedido assinalando que a reanimação do mercado interno se apoiou em um forte crescimento do emprego e em uma recuperação salarial limitada.

Se o crescimento anêmico dos últimos anos do governo anterior incentivou a vontade de rapina dos grupos econômicos concentrados, é altamente provável que a recessão atual a acentue mais. Ao apequenar-se a economia, como resultado dos ajustes e transferências de investimentos, esses grupos tentaram ao menos sustentar seu volume real de lucro, apropriando-se de uma porção crescente do PIB. Ainda empurrados por sua própria dinâmica e pelo exercício da totalidade do poder, é quase certo que buscarão absorver um volume real maior.

Além disso, as medidas que buscam reequilibrar os desequilíbrios provocados pelas próprias medidas econômicas do governo causam maior instabilidade e empobrecimento do grosso da população. É o caso da tentativa de desacelerar a alta da cotação do dólar subindo as taxas de juros, com o que, às vezes, consegue-se frear, mas por pouco tempo, essa tendência – e às custas do agravamento da recessão. Ou quando se pretende apequenar o déficit fiscal reduzindo o gasto público (despedindo empregados, fechando programas, etc.), o que agrava a recessão e em consequência reduz as receitas fiscais e aumenta o déficit. Em suma, nos encontramos diante de um círculo vicioso de concentração de riqueza, apequenamento do Estado e fundição da atividade econômica.

A queda do salário real não atrairá mais investimentos internos ou externos por causa da queda dos mercados, nacional e global (não há alternativa exportadora). Enquanto isso, o governo aparenta apegar-se ao que seria uma tábua da salvação da economia: o endividamento externo que teoricamente o permita realizar investimentos reativo. Mas o clima rarefeito do mercado financeiro internacional comprime o espaço dos potenciais credores, cada vez mais duros diante de uma economia nacional deprimida. Na realidade, a ansiedade em se endividar não responde a uma paixão desenvolvimentista, mas à pressão dos grupos de negócios que acumularam superlucros nestes últimos meses (exportadores, bancos etc.) e necessitam transformá-los em dólares. É essa evasão de capitais, e não o investimento na produção, a marca dos que defendem o endividamento.

Conclusão

Os dois motores de saída da recessão na década passada deixaram de funcionar, as políticas que buscavam compensar o ciclo recessivo global foram eliminadas pelas classes dominantes, sendo que antes haviam sido úteis para restabelecer a governabilidade e acumular lucros. Agora, foram destruídas pelo fato de frearem sua voracidade.

É possível elaborar um modelo excessivamente abstrato de estabilização do processo depressivo argentino sob a forma de “economia de baixa intensidade” ou de “penúria”, ou seja, uma estrutura econômica dual com um setor popular contraído e uma elite parasitando sobre o primeiro (superexploração  dos trabalhadores e outros saques às classes médias e baixas). Isto permitiria manter relativamente baixos os níveis de importações que assegurariam (não sempre) saldos positivos na balança comercial destinados a pagar dívidas externas. Estas últimas, ademais de encher as arcas das redes financeiras, podiam ainda ser utilizadas para bloquear perigos de implosão e de revolta social, operando como uma espécie de droga dosificada destinada a preservar a reprodução do sistema.

Esse modelo econômico sinistro necessitaria de maneira inevitável do apoio de um consentido mecanismo de repressão e degradação das classes inferiores. Tratar-se-ia da instalação de um regime neofascista como prevê a doutrina da Guerra de Quarta Geração (restringindo-nos à realidade da América Latina, não estamos longe para observar o que ocorre no México ou em países da América Central). Requereria, além de muita estabilidade no interior da articulação mafiosa, a atenuação das disputas internas diante de um espólio variável, sujeito a numerosos fatores de instabilidade, locais e internacionais. Trata-se de um cenário de difícil (mas não impossível) realização, com tendências depressivas acompanhadas pelo aumento da volatilidade em mercados decisivos, a proliferação de guerras, decadências institucionais dos Estados centrais, derrubadas e crises graves de Estados periféricos e outros sintomas claros que descrevem um planeta que se encaminha para horizontes de alta turbulência.

O fantasma de 2001

O governo macrista se comporta como o que se chama de “sistemas caóticos”. A diferença dos “instáveis” (em desordem permanente) e dos “estáveis” (que tendem de maneira irresistível à ordem), oscilam entre um ordenador (atrativo neofascista) e forças que o desordenam e o conduzam a crises de governabilidade.

O caminho para uma ditadura mafiosa está apontado por três estratégias convergentes: a corrupção de dirigentes, a repressão aos protestos sociais e políticos e o bombardeio midiático. São operações de eficácia incerta, circulando em meio à debacle econômica e à sanha dos interesses de grupos dominantes, que se apoiam em uma base social reacionária, cujo núcleo duro impulsionado por uma euforia neofascista está incrustado nas classes médias e altas.

A corrupção de dirigentes políticos e sindicais pode ser útil a curto prazo, para impor decisões impopulares ou frear protestos, mas desgasta os próprios corruptos. Promove a erosão das suas posições de poder, reduz sua capacidade operativa em pouco tempo e deixa-a cada vez mais vulnerável aos descontentamentos populares. É o que se percebe nos primeiros meses do governo macrista no que se refere à compra de sindicalistas, deputados, senadores e governadores.

A repressão avança e funciona um Ministério da Segurança subordinado ao aparato de inteligência dos Estados Unidos, regressaram as “polícias bravas” e foi ditado um “protocolo” de repressão de protestos populares. Aparecem as primeiras expressões, aparentemente negligentes, de repressão ilegal. Mas não é certo que essa estratégia de amedrontamento tenha êxito, é possível que seu efeito termine sendo o oposto do que o governo busca. Existe na Argentina uma enraizada cultura de enfrentamento contra a brutalidade estatal que pode resultar em um catalisador de transbordamento opositor.

O bombardeio midiático foi um instrumento decisivo da chegada de Macri à presidência. Teve uma elevada eficácia, atacando o governo anterior e ampliando um vazio político que podia ser ocupado por opositores de direita que se limitavam a denunciar o oficialismo, contrapondo promessas vagas de felicidade futura. Agora esses meios de comunicação têm de se encarregar da completa tarefa de defender um regime claramente antipopular. Neste novo cenário, sua eficácia é decrescente e a tentativa de compensar essa queda aumenta a pressão midiática (por si só digna de nota), produzindo efeitos de saturação e descrédito das ditas intoxicações, até gerar rejeições cada vez mais fortes.

Finalmente, a base social neofascista pode ser fanatizada ao extremo pelos meios de comunicação, mas é quase impossível impedir que sua área de influência, sobretudo nas classes médias, se reduza à medida que se prolonga a depressão econômica. O que terminará por deteriorar esse setor reacionário.

Em síntese, o sistema dispõe de instrumentos e apoios sociais crescentemente vulneráveis, sua força depende em última instância do grau de debilidade de seu adversário: o espaço popular se põe em marcha fortalecendo-se em luta. O instrumental autoritário poderá sofrer fissuras, desgarros cada vez mais importantes e seu inevitável centralismo operativo acabar acossado por uma maré ascendente de ataques, resistências e repúdios. Com isso, iria perdendo vitalidade e acentuando suas contradições internas. O contexto turbulento deveria contribuir com o processo.

Cedo ou tarde a resistência popular pode chegar a transformar-se em ofensiva generalizada contra o sistema. A acumulação de desdobramentos nas elites dominantes terminaria por gerar um salto qualitativo de grandes dimensões, não seria a primeira vez que ocorre este fenômeno na Argentina, ainda que seu aspecto e conteúdo possa chegar a incluir muitas novidades.

Obviamente, a grave deterioração do governo macrista pode levar a uma remodelação do equipamento presidencial (um tipo de “governo de unidade nacional”) ou a uma mudança institucional de governo, destinada a estabilizar a situação e ainda introduzindo medidas “sociais” mais ou menos audazes. Enfrentariam uma crise sistêmica espantosa, muito mais grave que em 2001, em um contexto global depressivo. Uma conjuntura deste tipo dificilmente poderia ser superada com aspirinas rosas – ou de outra cor.

Ao chegar à presidência, Macri lançou em alta velocidade uma série de decretos arbitrários, empregou de imediato uma ofensiva para assegurar o controle direitista dos meios de comunicação, comprou (ou extorquiu) dirigentes políticos e sindicais, reduziu o poder aquisitivo dos salários e aposentadorias, lançou uma onda de demissões de funcionários públicos e concretizou enormes transferências de recursos para as elites dominantes. 

Em suma: promoveu uma verdadeira “blitzkrieg” destinada a eludir as resistências possíveis antes que estas se organizassem. De todos os modos, não estava em condições de impor o gigantesco saque realizado mediante um sistema de negociações. Mas o nível de destruição atingido em tão pouco tempo provavelmente o haja convencido de seu êxito, incitando-o a seguir avançando.

A irrupção devastadora das elites dominantes podia ser similar a de um exército penetrando em um vasto território. Logo no começo, a ofensiva é exitosa, o efeito surpresa, a exploração de debilidades locais, a contundência da operação etc. permitem avanços rápidos aparentemente irreversíveis. Mas pouco a pouco as vítimas começam a reagir, acossando o invasor e o espaço, simplificado por mapas e informações de especialistas, transformando-se em um sistema complexo e crescentemente incontrolável.

A velocidade inicial da sucessão de vitórias que, em um princípio, aparentavam ser a chave do sucesso começa a ser percebida pelo invasor como a principal causa de suas dificuldades. A rapidez operacional gera fenômenos de não adaptação, de sobre-extensão estratégica que aumentam sua vulnerabilidade, levando finalmente à derrota, devastada por uma avalanche humana impossível de ser contida (recordemos o que aconteceu com a invasão de Napoleão sobre a Rússia).

Macri pode acabar descobrindo que a realidade social argentina é muito mais complexa do que detectou sua visão mafiosa, que a cultura popular existe e se reproduz (maltratada e golpeada, mas existe). E que os salários não são como ele disse uma vez, “um custo a mais”, que pode e deve ser comprimido ao máximo como qualquer outro insumo, mas o pagamento a seres humanos que trabalham, pensam e se defendem. E, finalmente, descobrir que para um bandido não há nada pior que outro bandido (os sócios de hoje podem ser os canibais de amanhã).


Notas do autor:

(1) Horácio Verbitsky, “A transparência do sigilo”, Página 12, Buenos Aires, 27 de março de 2016.

(2) Jorge Benstein, “A ilusão do metacontrole imperial do caos. A mutação do sistema de intervenção militar dos Estados Unidos e suas consequências para a América Latina”, Seminário “Nossa América Latina e os Estados Unidos: desafios do século XXI”. Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Central do Equador, Quito, 30 e 31 de janeiro de 2013. http://beinstein.lahaine.org/?p=516

(3) Jorge Benstein, art. Cit.

(4) Fonte: “Semiannual OTC derivatives statistics”, Bank for International Settlements (BIS).

(5) Eduardo M. Basualdo, “A distribuição do acesso na Argentina e suas condicionantes estruturais”, Memória Anual de 2008, do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), Argentina.

  
(*) Jorge Beinstein é economista argentino, docente da Universidade de Buenos Aires.

Contato: jorgebeinstein(0)gmail.com">jorgebeinstein(0)gmail.com

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania
Artigo originalmente publicado aqui.

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