A manutenção hegemônica e a atividade de inteligência

                                                                  
Alex Agra

A interferência dos Estados Unidos em outras nações, seja favorecendo a instabilidade democrática, ocupando militarmente outros países, ou financiando ditaduras é hoje reconhecida internacionalmente. Seja através do Poder Duro, ou seja, através dos instrumentos coercitivos de que dispõe o Estado americano, relativos ao seu poderio militar e econômico, seja através do Poder Suave, que são os instrumentos de atração e persuasão à disposição. 

Para ilustrar o Poder Duro, podemos utilizar como exemplo a ocupação americana no Iraque e para ilustrar o Poder Suave, podemos utilizar como exemplo o financiamento dos EUA através da Agência Central de Inteligência (CIA) de organizações como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) ou o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) no período da ditadura empresarial militar no Brasil.

A atuação direta ou indireta dos Estados Unidos nos países passa necessariamente pela atividade de inteligência, seja através da CIA ou da NSA (Agência de Segurança Nacional), sendo o trabalho da primeira extremamente importante para a manutenção da hegemonia burguesa no período da Guerra Fria, sobretudo nos países latino-americanos, a exemplo da interferência da CIA no Chile, com aprovação inclusive do Comitê dos 40, órgão responsável na época por fiscalizar as ações secretas no exterior.

Visto isso, para compreender um pouco mais desse cenário é necessário compreender onde estão fundadas as origens da política diplomática estadunidense e como elas se relacionam com a atividade de inteligência.

O Destino Manifesto é uma filosofia que expressa a crença de que o povo dos Estados Unidos foi eleito por Deus para comandar o mundo, “o destino dos EUA é conquistar”. Esse pensamento vem do período correspondente à marcha para o Oeste, que culminou na morte de centenas de povos indígenas. A marcha para o Oeste era lida como um resultado da missão civilizatória e territorial americana, ou seja, a expansão geográfica e política era uma expressão dessa vontade divina de conquista.

Em 1823, através do presidente James Monroe, foi criada a Doutrina Monroe, com o slogan “América para os americanos”, já denunciando do que se trata a doutrina, que consistia em três pontos: impedir a criação de novas colônias na América, impedir a intervenção nos assuntos internos dos países americanos e impedir estrategicamente o envolvimento dos EUA em conflitos relacionados aos países europeus.

Mais tarde, em 1900, é feita uma releitura da Doutrina Monroe chamada Corolário Roosevelt, criada pelo então presidente Theodore Roosevelt para justificar a expansão estadunidense pela América Latina. Dessa releitura, veio uma política diplomática conhecida como “Diplomacia do Dólar”, uma política de garantia de empréstimos e endividamento dos países latino-americanos. 

Ela começa em Cuba com a Emenda Platt, no Panamá com a construção do Canal, e na Nicarágua com a Revolta de 1909. Acompanhando ela, existia a política do Big Stick (Grande Porrete), derivada de um provérbio africano que dizia “fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete", que resultou na expansão da marinha americana, e era fundamentada na “obrigação” dos países a se submeterem à Diplomacia do Dólar, caso contrário, estariam sujeitos à ocupação.

Em 1933, é criada a Política de Boa Vizinhança, uma política diplomática criada por Franklin D. Roosevelt para tentar reestabelecer a boa relação com os países latino-americanos após o desgaste gerado pela política intervencionista do Big Stick. Oficialmente, a política se tratava de investimentos e venda de tecnologia dos EUA aos países da América Latina, em troca de apoio à política externa estadunidense, e ligado a esses investimentos estava um movimento de aproximação cultural que visava a influência hegemônica dos EUA.

Em 1940 é criada a agência Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), presidida por Nelson Rockfeller e vinculada diretamente ao Conselho Nacional de Defesa dos Estados Unidos. O objetivo dessa organização era criar um aparato hegemônico no ambiente cultural, sobretudo, no espaço cinematográfico, voltado para a manutenção e difusão de elementos ideológicos ao longo dos países da América Latina. 

Esse aparato visava, através de uma aproximação cultural dos EUA com os países latino-americanos, criar um aparelhamento ideológico para legitimar a Política de Boa Vizinhança. Nessa época, por exemplo, são criados personagens como o Zé Carioca, pertencente aos Estúdios Disney, e o filme Saludos Amigos, que apresentou o Pato Donald, e que enfatizava a Política de Boa Vizinhança.

A atividade de inteligência passa a ter função central no período da Guerra Fria. Com o crescimento da União Soviética e o avanço das forças comunistas na Segunda Guerra, responsáveis quase que inteiramente pela queda do Terceiro Reich e com Cuba mostrando ao mundo o potencial revolucionário das massas, os Estados Unidos veem uma ameaça crescente ao seu poderio hegemônico, tanto no campo econômico, quanto no campo bélico. Um exemplo dessa visão são as corridas armamentista e espacial, que constituíram uma série de esforços de ambos os países para se mostrarem mais avançados tecnologicamente.

Tendo em vista essa grande ameaça, os Estados Unidos temem então que “uma nova Cuba” seja instaurada em territórios vizinhos. Começa então uma forte articulação da CIA para voltar-se ao financiamento de golpes de Estado, ditaduras e movimentos antirrevolucionários em toda a América Latina, reforçando e insuflando em todos os espaços possíveis o pensamento anticomunista.

A CIA atuava tanto com o trabalho de espionagem, ou seja, coleta de informações estratégicas de interesse do Estado estadunidense, quanto com as ações encobertas, as chamadas intervenções diretas.

Na mídia, por exemplo, podemos lembrar que em 14 de agosto de 1965, em um telegrama ao Departamento de Estado norte-americano, o embaixador Lincoln Gordon relatou um diálogo do dono da Globo com cérebros do golpe em decisões sobre sucessão e endurecimento da ditadura empresarial-militar. 

No telegrama do embaixador, é dito que Marinho estava “trabalhando silenciosamente” pela prorrogação ou renovação do mandato do ditador Castelo Branco, junto a um grupo composto por diversos nomes importantes do regime, como general Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar, Luis Vianna, chefe da Casa Civil, e o general Golbery do Couto e Silva, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI).

Nesse sentido, toda a atividade de inteligência no Brasil era voltada para a perseguição e captura de revolucionários comunistas ou potenciais militantes de esquerda. Organismos como o SNI ou o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) eram voltados exclusivamente para a contenção da “ameaça interna”, ou seja, a coleta e análise de informações estratégicas no intuito de capturar os dissidentes do regime, a exemplo do trabalho executado pela equipe de Sérgio Paranhos Fleury, que culminou na captura e morte do revolucionário Carlos Marighella, do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Na atualidade, o Brasil ainda está muito vulnerável em relação ao aparato das agências de inteligência estadunidenses. É muito comum o Departamento de Defesa dos Estados Unidos financiar a criação de softwares e mesmo um software livre ou auditável pode ter uma porta de entrada que permita a agências como a NSA ou CIA coletar informações.

A própria internet é um projeto de Estado que veio a partir da disputa tecnológica na Guerra Fria, como o governo dos EUA como um grande financiador da iniciativa privada nesse sentido. Ao que é divulgado na mídia, sobretudo pelo New York Times, o aparato tecnológico dos EUA do ponto de vista cibernético é tamanho que o governo estadunidense em parceria com Israel conseguiu, através de um vírus chamado Stuxnet, atrasar o programa nuclear iraniano.

O TCP/IP, principal protocolo de envio e recebimento de dados MS internet, foi primeiro disponibilizado pelo Departamento de Defesa estadunidense. Dos treze servidores raiz da internet, 10 são localizados nos Estados Unidos.

As próprias empresas de telefonia do Brasil são empresas transnacionais, não tendo o país um satélite próprio voltado para a comunicação, seja do governo ou de caráter militar. O Estado brasileiro hoje não tem uma doutrina de inteligência ou uma agenda informacional e a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) é inclusive proibida por lei de fazer interceptação telefônica. Ademais, grande parte das lideranças da ABIN hoje são delegados de Polícia Federal, que inclusive protagonizaram o caso dos grampos ilegais que beneficiou o banqueiro Daniel Dantas e foi investigado posteriormente na chamada CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dos Grampos.

Entender esse panorama é essencial para compreender o cenário em que se dá a luta dos movimentos sociais atualmente. A preocupação dos movimentos sociais (especificamente dos comunistas) com a atividade de inteligência e consequentemente, de contrainteligência, não é necessariamente uma preocupação atual.

Um comandante militar soviético responsável por chefiar o Exército Vermelho, Mikhail Tukhachevsky, já havia mostrado essa preocupação ao escrever o artigo “Serviço de Informação e de Reconhecimento nas Lutas de Rua”. Nele, o revolucionário russo escreve uma série de medidas a serem adotadas pelos militantes antes e durante o período revolucionário, dando destaque aos serviços de informação e a importância do elemento informacional como uma arma estratégica da luta revolucionária. 

Segundo Tukhachesky, “Sem um cuidadoso serviço de informação sobre os objetos colocados em questão, as ações vitoriosas de luta das unidades revolucionárias dos sublevados são inconcebíveis, durante a condução dos primeiros golpes, no início da insurreição proletária socialista.”

A obra das agências de inteligências no sentido de fortalecimento de uma hegemonia tem repercussões muito claras, sobretudo em termos de superação da consciência de classe. O trabalho de conscientização da classe trabalhadora tem sido cada vez mais complicado e é necessária uma análise não só do ponto de vista histórico, mas também do ponto de vista do comportamento geopolítico mundial, com um olhar atento para a principal representação da potência capitalista, os Estados Unidos.

Mesmo a política interna estadunidense pode ser reveladora para entender alguns obstáculos da luta revolucionária, e para termos um bom exemplo disso basta analisar atentamente a declaração de John Ehrlichman, assessor político do governo de Richard Nixon para a CNN: “Nós não poderíamos tornar ilegal ser anti-guerra ou ser negro, mas fazendo o público associar hippies com maconha e negros com heroína, e depois criminalizando as duas drogas severamente, nós poderíamos destruir essas comunidades.

Assim poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, suas reuniões e difamá-los diariamente nos noticiários. Se nós sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim”. Através da análise dessa declaração, podemos refletir por exemplo qual é o verdadeiro papel da Drug Enforcement Administration (DEA) e demais agências voltadas para a repressão de entorpecentes dos Estados Unidos que também realizam essa atividade externamente, semelhante ao que fez o DEA na Colômbia.

Considerando o papel dos Estados Unidos na manutenção hegemônica, analisar declarações como essa, mesmo que voltadas inicialmente para uma política interna, são essenciais para compreender os obstáculos dos comunistas em todo o mundo, sobretudo porque, parafraseando o próprio Marx: “as ideias dominantes na época nunca passaram das ideias da classe dominante”.

(Com o Diário Liberdade)

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