Uma causa socialmente fracturante: abolir o tratamento por “dr.”



Paulo Rangel

Deixo aqui, mais uma vez, a proposta de inovação social, sociologicamente fracturante, de abolição do tratamento das pessoas com base na sua qualificação académica.

 1. Em Portugal, ao invés do que sucede na maio­ria dos países europeus, as pessoas com formação e grau universitários são objecto de um trata­men­to diferenciado, verdadeiramente discriminatório. Tanto nas fór­mu­las de cortesia quotidiana como em todos os actos públicos ou documentos oficiais, os licenciados não são designados pelo nome ou pelo antecedente comum e igua­­litário, para as mulheres, de “senhora” ou “de senhora dona” ou simplesmente de “dona” e, para os homens, de “se­nhor”. São obrigatoriamente ape­li­da­dos de “senhora doutora”, “de “senhor engenheiro” ou de “senhor arquitecto”. 

Esta norma social e até administrativa tem uma conotação claramente aristocrática e oligárquica, a fazer lem­brar uma so­ciedade or­ganizada em torno de uma novel “no­breza de toga”. É uma norma social e pública paralela ao antigo tratamento por “Dom”, entre nós, reservado à nobreza ou, pelo menos, aos seus mais altos dignitários.

E também paralela, dentro da Igreja católica, ao tratamento por “Dom” – incompreensível à luz de qualquer critério cristão – dos bispos e de alguns abades dos grandes conventos.

Como pode um país que se diz democrático, que leva já mais de 40 anos de democracia, continuar a viver com esta discriminação dos seus cidadãos em razão da formação universitária? Porque têm os frequentadores do ensino superior direito a fazer anteceder o uso do seu nome de um título que indica essa formação? Porque têm eles, no normativo social, mas também e mais escandalosamente no normativo público e oficial, direito a um tratamento discriminatório de todos os restantes?

2. Mais espantosa do que a subsistência desta discriminação incompreensível é a circunstância de os maiores paladinos da igualdade, geralmente polícias da correcção política, conviveram pacificamente com ela e se prevalecerem ostensivamente dela. 


As nossas forças da esquerda radical – que o mesmo é dizer do Bloco de Esquerda e de ala quase “bloquista” do PS – passam a vida com as causas fracturantes na mão, mas só e apenas no plano moral e dos costumes. A sua vida urbana e supostamente cosmopolita, feita por entre o que julgam ser as elites intelectuais, artísticas e mediáticas, não lhes permite abrir os olhos para esta discriminação social. Interessam-lhes as causas moralmente fracturantes, mas não lhes importa a fractura social. 

De resto, são bastantes os sociólogos – entre os quais pontificam alguns que se evidenciaram pela defesa de causas moralmente inovadoras – que reconhecem que há hoje mais abertura mediática e pública para a remoção dessas barreiras morais do que disposição do sistema mediático e político para a abolição destas impregnadas fracturas sociais. 

Verifico, aliás, que, na sequência do meu discurso no último congresso do PSD, onde fiz a sugestão de abolição do tratamento por “doutor, engenheiro ou arquitecto” nos actos, documentos e instituições oficiais, o silêncio foi sepulcral. A esquerda radical, sem perceber as lógicas da gramática, incomoda-se com a denominação de “cartão do cidadão”; mas não lhe faz qualquer espécie esta divisão em duas categorias de cidadãos: os que são tratados por “título” e todos os restantes tratados por “senhores”. Os gurus do igualitarismo fracturante querem ser iguais, mas parece que querem que alguns sejam mais iguais do que outros…

3. Esta norma social é sintoma de um mal mais profundo: Portugal é ainda uma sociedade aristocrática, com grande resistência à mobilidade social e com altos níveis de reprodução social das elites. Níveis esses que passam naturalmente pelo fechamento das castas sociais, por uma grande endogamia e pela cultura da “cunha, da cumplicidade e do compadrio”. Tendo em vista a apreciação social que o “direito ao uso e porte de título” dá, as famílias tendem a educar e orientar os seus filhos para o sistema de valores correspondente. 

Mas, fora da classe alta, as famílias da clas­­se média e média baixa educam os seus filhos para o ob­jec­tivo fundamental de “en­trar na universidade”. O in­gres­so na acade­mi­­a significa a realização de um “de­­­sí­gnio vital de feli­ci­da­de” e constitui um sinal exterior de “triunfo so­cial”. Este condicionamento familiar, acompanhado do sobredito e fortíssimo condicionamento social, distorce, aliás, o sistema de ensino e prejudica o surgimento e o aproveitamento de vocações profissionais e técnicas, que dispensariam a frequência do ensino superior.

Comentários