‘Governo Temer não tem legitimidade política e capacidade operacional pra articular saídas à crise’

                                                          
 Gabriel Brito e Valéria Nader

O governo provisório de Michel Temer acaba de anunciar seu primeiro pacote de medidas econômicas, cuja absorção pela sociedade brasileira ainda é imprevisível, assim como a própria eficácia de tais decisões. Para debater o grave contexto econômico, o Correio da Cidadania entrevistou o economista e professor da Unicamp Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, uma das figuras mais proeminentes do país na referida área. “É muito difícil a economia voltar a crescer razoavelmente e conseguir os resultados que estão sendo apontados pelo governo para a sociedade, do ponto de vista fiscal”.

Na conversa, Belluzzo menciona a circunstância de ilegitimidade que elevou o PMDB ao topo do governo como complicadora de qualquer plano que se possa ter. Ao passo que ressalta a atual vulnerabilidade de um setor privado com sérios problemas de caixa, afirma que uma nova rodada de privatizações não teria qualquer utilidade, ao contrário das concessões na área de infraestrutura no formato das PPPs (Parcerias Público Privadas), no que enxerga um importante instrumento de combate à recessão.

“Tivemos inflação de custos combatida com aumento da taxa de juros, num exercício inepto de regime de metas de inflação. Se pegarmos qualquer autor razoavelmente qualificado pra discutir a questão, ele dirá que é uma loucura. Deu-se o choque de juros e jogou-se o setor privado para a defensiva, causando, na verdade, danos muito sérios ao funcionamento das empresas. Isso acrescido da Operação Lava Jato, que produziu tal efeito (...) As pessoas ficam com medo e vergonha de dizer, mas é necessário: os juízes e promotores precisam saber que não podem agir contra a sociedade. Eles têm obrigação de investigar e punir, mas precisam do mínimo de noção”, criticou.

Além de lamentar o ajuste econômico mal sucedido em 2015, Belluzzo traçou comparativos com os anos de Lula na presidência, sem deixar de levar em consideração o contexto global favorável ao mentor de Dilma. E também fez alusões à nossa ininterrupta retração industrial. “Para se ter uma ideia, em 1980, a participação das exportações brasileiras nas exportações mundiais era de 1%, igualzinha à da China e Coreia. Hoje em dia seguimos com 0,9% e a China tem 14%. Isso dá ideia de como perdemos posição, o que significa perda de dinamismo da economia interna também”, analisou.

A entrevista completa com Luiz Gonzaga Belluzzo pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Primeiramente, como você avalia o início do mandato de Michel Temer e a montagem de seu ministério?

Luiz Gonzaga Belluzzo: O governo tem apenas duas semanas e já teve mais incidentes do que quase todo o governo Dilma, entre declarações e contra-declarações, pra não falar do episódio que apareceu hoje (segunda, 23) em relação ao senador e ministro Romero Jucá, que pode ter consequências na montagem do ministério. Claro que foi muito obedecido o arranjo parlamentar que promoveu o impeachment. E houve uma distribuição de cargos e ministérios de acordo com os partidos e grupos, a exemplo do DEM, que ficou com alguns e fez parte dos que encaminharam e decidiram a saída da Dilma.

Não seria adequado fazer avaliação de ministério em duas semanas, mas, diante das sucessivas declarações e contra-declarações, é um pouco preocupante, algo especialmente verdadeiro na área econômica, porque já tivemos afirmações, creio que mais sensatas, a dizer que o ajuste fiscal não pode ser obtido e não terá resultados bons num período de depressão. 

Por outro lado, a meta fiscal estabelecida é muito mais conciliadora do que a proposta pelo governo anterior, até porque parece uma tentativa de fazer a mágica de tirar o coelho da cartola depois de tê-lo colocado à vista de todo mundo, como é a ideia de aumentar a meta do superávit pra conseguir um resultado mais favorável no curto prazo. O governo terá a oportunidade de cortar fumaça; infla-se a meta de superávit e depois corta-se a fumaça que encheu o balão, talvez um estratagema para ganhar a confiança do mercado.

Ao mesmo tempo, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, diz que ao longo dos próximos dois anos conseguirá uma estabilização da dívida pública. Isso vai depender muito do que ocorrer, como disse outro ministro, José Serra, das Relações Exteriores, com a política monetária. Porque, se ela continuar muito apertada, será muito difícil conseguir uma trajetória melhor para a dívida pública, pois o impacto dos juros sobre o déficit nominal e sobre a trajetória da dívida é muito claro.

Nesse sentido, estou escrevendo um livro que pretendo publicar logo, a fim de mostrar que, se não houver uma compatibilização entre política monetária e fiscal, não se terá estabilização da dívida bruta por um período razoável.

Correio da Cidadania: O que projeta, nesse sentido,  para a rodada de medidas de política econômica já anunciadas?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Li uma afirmação do Temer de que, ao lado das medidas de ajuste fiscal e austeridade, é preciso que o governo promova ações capazes de promover a recuperação da economia. É muito difícil conseguir resultados expressivos com a economia em recessão e ao mesmo tempo descolada de programas de prazo mais longo. Há certo consenso no mundo todo, e também no Brasil, quanto aos  instrumentos mais adequados pra se conseguir recuperar uma economia de setor privado muito debilitado, já que muitas empresas estão e estarão em recuperação judicial por conta do choque negativo da economia. E basta olhar a notícia dos mais de R$ 190 bilhões de cifra de endividamento das empresas em recuperação judicial pra ver como é grande o obstáculo à recuperação da economia.

Isso pra não falar dos efeitos promovidos pela Operação Lava Jato. Vi um juiz falando que não se trata de atrapalhar a economia. Não somos contra o prosseguimento das investigações. É claro que o queremos. Porém, é preciso separar os malfeitos dos dirigentes das empresas em si. As empresas são instituições sociais. É preciso oferecer oportunidade para que elas sejam preservadas, seja através da mudança de dono, de uma reestruturação na sua composição societária etc. É possível fazer algo assim.

De toda forma, quero destacar a necessidade de se dar um alento ao setor privado. Mostrar a ele que serão tomadas medidas de estímulo para a economia. Está muito claro que serão obtidas através do programa de concessões, o que, ao mesmo tempo, acena a tais empresas um alívio do ponto de vista de seus balanços, muito machucados pela taxa de juros e queda do nível de atividade e faturamento.

Não vejo capacidade política e operacional para o governo articular todas essas medidas de forma a resolver rapidamente tal questão. Posso estar enganado, mas, do meu ponto de vista, vamos entrar num período difícil, com muita oposição e rejeição. É a dificuldade de um governo que assumiu como assumiu, marcado pela mácula da ilegitimidade. As pessoas não acreditam, não se conformam. A própria fração da sociedade que protestou muito contra a Dilma não está confortável em prestar apoio e, cada incidente novo, como esse do Jucá, contamina muito o ambiente e complica a tomada de decisões mais firmes na direção da recuperação da economia.

É muito difícil, portanto, a economia voltar a crescer razoavelmente e conseguir os resultados que estão sendo apontados pelo governo para a sociedade, do ponto de vista fiscal.

Correio da Cidadania: Qual o balanço das medidas de enfrentamento à crise implementadas pela ex-presidente a partir de seu segundo mandato? Quais foram, nesse sentido, os efeitos do ajuste econômico de Joaquim Levy?

Luiz Gonzaga Belluzzo: É desagradável dizer que já havia falado antes. Mas na passagem de 2014 para 2015, em entrevista à Folha, eu afirmava ser esta uma decisão muito arriscada do governo Dilma. Até fiz uma comparação um tanto simples, ao dizer que a economia brasileira vinha do fim do ciclo de commodities, seguido de uma tentativa de se prolongar os efeitos desse ciclo, sobretudo na expansão do consumo, através de medidas fiscais, de estímulo às empresas, como por exemplo na desoneração, ao mesmo tempo em que houve uma demora e hesitação em se levar adiante, com mais vigor, o programa de investimento em infraestrutura, através das concessões, PPPs (Parcerias Público Privadas) etc. O governo demorou e a economia foi desacelerando.

Chegamos em 2014 e, se olharmos a sequência de taxas de crescimento, ela foi de 7,6%, altíssima, em 2010; caiu pra 3,9%, depois 2,7%, até chegar a 0,1% em 2014, em claríssima desaceleração. Fiz uma analogia com um pugilista que sai do round meio grogue, é levado ao corner e o treinador lhe dá um murro na cabeça pra ver se ele acorda. Ele desmaia. Portanto, o governo avaliou pessimamente o que deveria ser feito. Havia um déficit primário de 0,6%, que não era nenhuma tragédia. O mercado, pra variar, fez um escândalo em torno da situação fiscal, afirmando ser desastrosa, coisa que não era no momento. No entanto, a situação ficou de fato desastrosa posteriormente. Passamos de um déficit de 0,6% para este atual, de quase 3% do PIB.

O déficit foi provocado pelo choque da economia como um todo. Tivemos, por exemplo, um choque de tarifas que elevou a inflação de 6,5% para cerca de 10%. Agora, qual a perspectiva, com uma desaceleração fortíssima, desemprego e incapacidade de as empresas repassarem aumento de custos? Tivemos inflação de custos combatida com aumento da taxa de juros, num exercício inepto de regime de metas de inflação. Se pegarmos qualquer autor razoavelmente qualificado pra discutir a questão, ele dirá que é uma loucura. Deu-se o choque de juros e jogou-se o setor privado para a defensiva, causando, na verdade, danos muito sérios ao funcionamento das empresas. Isso acrescido da Operação Lava Jato, que produziu tal efeito.

As pessoas ficam com medo e vergonha de dizer, mas é necessário: os juízes e promotores precisam saber que não podem agir contra a sociedade. Eles têm obrigação de investigar e punir, mas precisam do mínimo de noção. Assim como os economistas precisam ter noção das restrições do direito, os operadores do direito têm obrigação de conhecer as restrições da economia. E precisamos ter peito de falar, sem medo. Se tivesse de falar cara a cara, eu diria: eles não têm noção de nada. Temos de ser muito claros a esse respeito.

Assim, foi criado um ambiente completamente negativo do ponto de vista das expectativas de todos os agentes. O desemprego começou a desestimular o consumo, a tentativa de prorrogar o ciclo com endividamento alto das famílias não deu certo e era preciso recorrer de maneira muito organizada a uma recuperação do investimento. E isso não ocorreu, ao contrário. Quando a economia declinava, a Dilma resolveu dar um choque de tarifas, de câmbio e de queda da taxa do investimento público. Isso jogou a economia pra baixo. Em 2015 caiu 3,8% e na verdade ela continua em queda impressionante.

Correio da Cidadania: Dentro desse contexto, como avalia os planos relativos a novas privatizações e concessões? Como se situam na análise da economia brasileira feita aqui?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Não sei o que eles pretendem privatizar. Se pretendem, por exemplo, fazer isso pra obter “recursos fiscais” a fim de resolver o problema do déficit, podemos dizer que já tivemos a experiência com FHC. Na época, por conta do câmbio valorizado e taxa de juros alta, a dívida pública disparou, saltando de 30% pra 70% do PIB. É uma enganação, não resolve nada.

Já as concessões, não. Elas fazem parte de um processo de coordenação e articulação público-privada que é necessário, para os portos, aeroportos, rodovias. Não acho má solução. Estava previsto no PAC que também se promovessem as concessões. É claro que, como já escrevi várias vezes com o Gabriel Galípulo, não será viável sem condições adequadas de financiamento.

Existe uma discussão sobre o papel do BNDES. Sem o banco, não se criam condições adequadas ao financiamento e de apresentação às empresas de possibilidades de uma taxa de retorno adequada aos seus investimentos. O programa de concessões precisa ser muito amplo, porque o Brasil tem deficiências enormes na infraestrutura, que foram se aprofundando nos últimos anos. O país mudou, se transformou, expandiu a fronteira agrícola. Ao mesmo tempo, não criou condições melhores de armazenamento de grãos, de transporte, os portos estão obsoletos, o que impacta muito o custo dos produtos brasileiros a serem exportados.

Correio da Cidadania: Como analisa o debate sobre a Reforma da Previdência? É fundamental que seja empreendida agora?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Estudei o comportamento da previdência e vê-se que a previdência urbana foi superavitária em todos os anos desse ciclo. Até porque foi impressionante o crescimento do emprego formal. E uma coisa tem a ver com a outra, claro. Coloca-se mais gente no mercado de trabalho com carteira assinada, começa-se a recolher mais e a receita da previdência aumenta bastante. A previdência rural sempre é deficitária, é praticamente um programa assistencial. Como ficou muito tempo sem cobertura, não havia contribuição e de fato é deficitária. No entanto, se olharmos o orçamento da seguridade social como um todo (o que engloba a saúde, previdência e assistência social), é superavitário.

Eu não sou contra a idade mínima, porém, precisa ser muito bem discutida, e dentro das condições brasileiras. A segunda questão é que eles pretendem fazer a reforma sem levar em consideração os direitos adquiridos. Quando se adquire direito à aposentadoria? Quando se entra no mercado de trabalho. E ao vermos o Henrique Meirelles falar em “rever esse negócio de direitos adquiridos”... Não é assim. Está se violando uma regra universal.

Esse não é um problema somente do Brasil. Em todo lugar do mundo onde a ordem jurídica democrática e liberal esteja consolidada não se pode transgredir nessa norma. Existem certos códigos pra se reconhecer os direitos das pessoas e, no caso, o código é a entrada no mercado de trabalho. Acho muito grave, portanto, a fala de Meirelles. De toda forma, vejo a aprovação da ideia com muita dificuldade no Congresso, mesmo nas circunstâncias atuais.

Correio da Cidadania: Fazendo um olhar retrospectivo, como você avalia a política econômica que foi levada a cabo no governo Dilma desde o seu primeiro mandato? Faria algum comparação com a condução da economia sob Lula?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Vamos procurar ser justos na avaliação. O Lula se beneficiou de um ciclo de crescimento da economia mundial muito exuberante. E teve como subproduto um crescimento expressivo dos preços das commodities. Ou seja, as chamadas relações de intercâmbio ficaram muito favoráveis aos países produtores de commodities, por força da demanda chinesa.

O que aconteceu no mundo foi uma coisa extraordinária do ponto de vista da transferência da produção industrial e manufatureira para a China. Se olharmos os setores onde a China tem liderança produtiva, em eletroeletrônicos, bens de capital, sem falar em produtos tradicionais, como os têxteis, vestuário, calçados e um sem número de setores, vemos um desempenho impressionante. Algo que ocorreu em 20 ou 30 anos, sendo mais ou menos generoso, muito rapidamente, e mudou toda a geoeconomia mundial. E o Brasil perdeu muito de sua condição de economia industrial.

O Brasil foi a maior economia industrial entre os que hoje se chamam emergentes. Perdeu tal condição para a Coreia e, sobretudo, para a China. Assim, a posição brasileira, como país exportador de commodities, dada sua dotação de recursos naturais, e o crescimento de seu agronegócio, do ponto de vista tecnológico e das práticas de gestão, mudou muito. Exportar commodities hoje não é a mesma coisa que exportar produtos primários em 1920, é muito diferente.

O Brasil se valeu dessas vantagens para se beneficiar do ciclo de commodities, que foi muito exuberante. Foi interrompido em 2008, mas ainda teve fôlego por conta das ações da política econômica chinesa, que manteve a demanda elevada em função dos investimentos pesados que estavam fazendo. E a partir de 2010, 2011, começou a desacelerar.

Portanto, pra discutir as diferenças das políticas econômicas entre os dois presidentes é preciso considerar isso. O Lula aproveitou muito bem o momento. Houve, por exemplo, medidas como o reajuste do salário mínimo, o crédito consignado, o Bolsa Família -  ou seja, em cima do ciclo de commodities, montou-se um ciclo de consumo e expansão da demanda interna. Isso ajudou muito na reabilitação do emprego. E o crescimento do emprego formal combina direitinho com o superávit da previdência no período.

E aí chegamos aos 5 anos de Dilma. Costumo dizer que a presidente deu um cavalo de pau. Impressionada pelo debate, pela pressão do mercado, resolveu fazer um ajuste fiscal que terminou em desastre, em desajuste. E do meu ponto de vista era desnecessário. Repito: a inflação estava em 6,4% - aliás, ficou em torno de 5,8% quase o tempo todo. Em 2015, ocorreu o choque de tarifas, a inflação foi pra 10%, a taxa de juros a 14,25%, debilitando a demanda global e enfraquecendo as empresas, que carregam dívidas a preço maior e veem seus balanços se deteriorarem. Tem-se uma contração de crédito, as famílias já endividadas perdem emprego, precisam ir no banco renegociar suas dívidas e tudo isso leva a economia à recessão.

Ao mesmo tempo, o câmbio se desvalorizou e hoje é o único fator de dinamismo da economia, porque permite que se produzam superávits comerciais e redução do déficit de conta corrente. É o único elemento que “segura os cocos” da economia, os demais fatores são todos negativos.

Devemos tratar as pessoas com respeito, fui professor dela, mas não posso me furtar de fazer tais observações. Foram erros de concepção, de estratégia, dos quais ela mesmo se penitenciou, como se vê na entrevista à Carta Capital, ao admitir os erros. Inclusive o erro de colocar no Ministério da Fazenda uma pessoa que, com todas as suas experiências anteriores, inclusive de ex-secretário do Tesouro, não demonstrou aptidão para ser ministro da Fazenda.

Correio da Cidadania: Quais perspectivas você enxerga para a economia brasileira em todo esse contexto, considerando o dramático desemprego e também o atual cenário internacional?

Luiz Gonzaga Belluzzo: O cenário internacional não só é incerto como perigoso. Na posteridade da crise financeira, os bancos centrais reinflaram, novamente, algumas bolhas no mercado de bônus públicos e privados nas bolsas de valores. As empresas, sobretudo nos EUA, estão com apetite de investimento muito baixo. Na verdade, usam os ganhos obtidos na salvação promovida pelo seu Banco Central pra recomprar suas próprias ações e pagar dividendos, de modo que possuem um caixa enorme.

A economia norte-americana anda de lado, há um risco razoável de os EUA subirem os juros de novo. Cometeram essa imprudência em dezembro, os mercados reagiram mal e não houve prosseguimento. Mas nas atas do Fed (o Banco Central americano) vê-se que eles ameaçam subir de novo, o que a meu ver teria efeito muito negativo na economia mundial.

Os fundos de hedge, mesmo de pensão, estão carregados de ativos ultra-valorizados. Se a taxa de juros sobe, provavelmente se provocará uma desvalorização, não se sabe de que proporção, de tais ativos, o que afeta o balanço das empresas e o lucro dos bancos. Ou seja, monta-se outra bolha e não se sabe como sair dela. Aumentar a taxa de juros não parece a melhor maneira, pois pode precipitar um crash. Não vou falar da Europa porque não anda para lugar nenhum, enquanto a China desacelera.

As restrições ao crescimento brasileiro são muito grandes. Temos um problema que já se manifesta há tempos: a abertura financeira que fizemos. Com ela, entregamos sem muitos cuidados e proteção a taxa de câmbio brasileira aos movimentos de capitais. Durante muito tempo, tanto nos governos FHC como Lula, promoveu-se a valorização do câmbio.

E aí entramos num problema muito sério da economia brasileira, que foi a perda de participação da indústria brasileira no PIB. Entre 1985, 1986, era de 23%; hoje é 9%. Ou seja, o Brasil perdeu posição como economia industrial diante de seus parceiros emergentes. Para se ter uma ideia, em 1980, a participação das exportações brasileiras nas exportações mundiais era de 1%, igualzinha à da China e Coreia. Hoje em dia seguimos com 0,9% e a China tem 14%. Isso dá ideia de como perdemos posição, o que significa perda de dinamismo da economia interna também.

Se observarmos as taxas de crescimento da economia brasileira ao lado do declínio da indústria nos últimos 20 anos, talvez percebamos uma associação entre o declínio da indústria brasileira e as taxas de crescimento modestas que tivemos, se comparadas com as taxas obtidas até a crise da dívida externa dos anos 80. No período Lula, foram um pouco mais altas, em torno de 3%, mas, no período FHC, 2,5%. Com Dilma também foram baixas, ficando todos numa média parecida. Esse contexto tem a ver com o baixo dinamismo da indústria brasileira. E não estamos percebendo nem um pouco que, se tivermos deficiência na evolução da economia industrial, teremos problemas de produtividade. Fundamentalmente, a produtividade nasce dos métodos de produção e introdução do progresso tecnológico na indústria.

Faço um parêntese: você já deve ter ouvido muitas vezes as pessoas dizerem que estamos ingressando numa era “pós-industrial”. Não é verdade. Estamos entrando numa era hiper-industrial. E é simples entender. A agricultura, por exemplo, não é a mesma do século 19 ou da década de 20 do século passado. Tivemos a industrialização do campo, com a introdução de técnicas de produção semelhantes às da indústria. É só ver como são os sistemas de irrigação, controle automático, como funcionam as máquinas colheitadeiras, os tratores... É outra agricultura. O uso de adubos, produtos químicos, a genética, as variedades criadas pra defendê-la das pragas significam uma mudança impressionante.

O mesmo acontece com os serviços. Você grava esta entrevista com seu aparelho aqui. Multiplique isso pelo locais de trabalho do mundo e verá que se despovoaram os escritórios, substituindo-se muitos trabalhadores por softwares nas funções rotineiras. No jornalismo, aconteceu com o copidesque, por exemplo. Assim, foram substituindo as tarefas rotineiras. Isso se chama industrialização do serviço, a reprodução dos padrões da indústria em outros setores. As pessoas pensam que indústria é uma sucessão de fábricas. Não. A indústria é uma maneira de produzir e estabelecer relações de trabalho. E acontece que, rapidamente, estão se substituindo muitas funções pelos programas de TI, equipamentos e softwares cada vez mais especializados e eficientes. Isso traz um problema pro conjunto da sociedade.

Assim, quero dizer que o país que não tem base industrial para responder os desafios da economia contemporânea ficará numa situação muito difícil. O Brasil tem 200 milhões de habitantes, sendo 80% nas cidades. Como se regride para uma economia de fraca base industrial? Não dá.

Leia também:

“Teremos um governo de crise permanente, que lembra o final do mandato de Sarney” - entrevista com o historiador Lincoln Secco.

(*) Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

(Com o Correio da Cidadania)

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