Mídia alternativa: fermento da potência social. Como surgiu a Adital


                                                                              
Ermanno Allegri e sua luta incansável pela democratização da comunicação
IHU - Unisinos

João Vitor Santos

O sociólogo espanhol Manuel Castells afirma que vivemos na época da sociedade da informação . Logo, não é difícil aceitar que a transformação dessa sociedade tenha na informação o instrumental para a mudança. Embora redes sociais e a própria Internet se apresentem como meio mais democrático de gerar e consumir informação, os grandes conglomerados de comunicação ainda detêm certo poder. 

Pensar uma sociedade diferente, que não siga os ditames do poder do capital — que faz girar a grande mídia — e, de fato, valorize o potencial social passa por pensar uma mídia alternativa. O italiano Ermanno Allegri é uma daquelas pessoas que pensa nessas possibilidades. Sua história de vida se mistura à constituição do conceito de mídia alternativa. "É procurar oferecer e colocar como protagonistas aqueles que são realmente protagonistas da sociedade e os fatos que mudam a sociedade”, define.

E é, de fato, isso que o sorridente e muito bem-humorado senhor de cabelos grisalhos faz. Desde muito jovem, quando era coroinha, envolvia-se em fazer boletins informativos na sua paróquia. Queria fazer circular o conhecimento e provocar as pessoas a pensarem. "A sociedade precisa de um empurrão. Devemos publicar o bem que fazemos, para que as pessoas percebam que existe o bem na sociedade”, diz, durante um bate-papo com a IHU On-Line. 

Nesta conversa, o italiano, que vive há quatro décadas no Brasil, destaca o papel formador da mídia alternativa em momentos de crise. "Vamos falar de crise colocando os dados e, com isso, não quero dizer que é para poupar o PT [Partido dos Trabalhadores], a Dilma [Rousseff, presidenta do Brasil] ou quem quer que seja. Vamos dizer o que foi o PT e quais foram as esperanças que ele traiu, orientar e sugerir sobre quais são os passos que devemos dar”, analisa. "No caso do Brasil, tem que sustentar essa esquerda. Porque é a única que, neste momento, oficialmente, pode barrar o que está aí, a proposta desse grande capital, que quer tomar conta do Brasil”, complementa.

Ermanno Allegri é padre italiano, naturalizado brasileiro. Há mais de 40 anos vive no país, onde foi coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), criou uma agência de notícias chamada AnotE (Agência de Notícias Esperança), com o intuito de inserir nas grandes mídias notícias sobre as atividades sociais realizadas no Estado do Ceará. Atualmente, é diretor executivo da Adital [Agência de Informação Frei Tito para a América Latina e Caribe], uma agência de notícias sediada em Fortaleza, que trabalha para levar informação e conteúdos relacionados à área social latino-americana e caribenha.


Confira a entrevista

IHU On-Line – Quando e como o senhor descobriu a comunicação, vendo nela uma aliada do trabalho pastoral?

Ermanno Allegri - Quando era criança, com nove anos, fui coroinha e existia um grupo de seminaristas na minha cidade, ainda na Itália, que fazia um boletim, um informativo chamado La Vetta (em italiano, significa o topo da montanha). Era algo muito paroquiano, feito pelos seminaristas e por quem estivesse interessado. Não sei se essa mania — de fazer comunicação — eu peguei daquele tempo. Só sei que, depois, já como estudante no seminário, começamos a nos perguntar: por que não fazemos um boletim? E, logo que surgiu a ideia, eu pensei: sim! Eu gosto muito de fazer. Assim, comecei a trabalhar nesse informativo, já tendo entre 18 e 20 anos, e acabei sendo um dos editores desse boletim. Colocava notícias curtas, coisas sarcásticas e cômicas, sempre gostei muito disso.


No Brasil

Depois, vim para o Brasil, em 1974, e fui trabalhar no interior da Bahia, em Santa Maria da Vitória. Nosso trabalho era, sobretudo, com a área rural. Era muito pesado, não tinha sindicato e ainda havia muita grilagem, fazendeiros que expulsavam posseiros, assassinavam. E, nesse local, para alcançarmos as comunidades, fizemos um boletim. No chamado "A voz do campo”, escrevíamos artigos e reproduzíamos outros, e também colocávamos poesias. Há sempre pessoas que escrevem poesia, que possuem esse talento de fazer os versos. Fizemos até um livretinho, com o título "É chegado o nosso tempo”, cuja frase foi retirada de um poema feito por um lavrador.

Depois, quando fui para Goiânia [Goiás], na Comissão Pastoral da Terra (CPT), ficava encucado com o fato de que aconteciam coisas horríveis com os trabalhadores do campo. Ao mesmo tempo, nós da Pastoral e outras tantas comissões do campo fazíamos um trabalho muito bom de conscientização e organização, mas isto não aparecia, não era notícia. 

Quando acontecia alguma coisa que interessasse a eles, a imprensa nos procurava. Nós até procurávamos jornais, mas éramos ilustres desconhecidos. As pessoas nos recebiam, mas só publicavam algo se fosse de interesse delas. Até que, um dia, um jornalista foi até a Pastoral da Terra e me disse: "Olha, padre, eu só noticiei esporte até hoje. Agora, cheguei de manhã e me disseram que era para fazer uma entrevista sobre reforma agrária. E eu não sei nada sobre reforma agrária”. Pronto, eu precisava explicar tudo.

Acabamos fazendo a entrevista, depois, pedi ao jornalista que me enviasse uma cópia antes da publicação para dar uma revisada, para evitar erros e problemas de desinformação. Ele mandou e fiz os apontamentos. Essa história é importante para dizer que, quando estive em Goiânia, de 1986 a 1990, foram os anos mais duros. Em 1987, ano da Constituição, foram mais de 300 assassinatos, sobretudo de lideranças rurais. Andava como um maluco, indo de um enterro a outro.


A contrainformação

Em 1990, fui para Fortaleza, onde estou até hoje. Cheguei na época do governo de Tasso Jereissati e observei que ele chamava a imprensa para dizer que o Ceará saía do atraso, fazia uma série de louvores, dizia que era o novo estado de progresso do Nordeste. Mas nada era verdade. Entretanto, o fato é que ele conseguia vender essa imagem. Isto nos fez pensar em fazer um documento para revelar, de fato, como é o Ceará. Assim, reunimos as pastorais sociais e começamos a fazer esse trabalho de organizar o documento, que nunca saiu.

E por que não saiu? Percebemos que cada pastoral era absolutamente ignorante sobre o trabalho social que outra pastoral realizava. Elas não se conheciam e não conheciam a realidade como um todo. A Pastoral da Terra era a única que tinha um conhecimento sobre a realidade rural, números de terras de latifúndio, para reforma agrária, etc. A Pastoral da Criança, uma das mais ativas, sabia quantas crianças atendia, mas não sabia quantas crianças estavam com fome, qual era o percentual de mortes, entre outras informações. 

Foi, então, que começamos a pensar: não é questão de fazer um documento. É neste momento que começo a lançar a ideia de uma agência de notícias. Conhecia a experiência de uma agência de São Paulo, a Agen, que já havia morrido e poderia ser uma oportunidade de fazer outra, pelo menos para o Ceará. Ali nasceu a AnotE, Agência de Notícias Esperança.

IHU On-Line - Mas, na verdade, o senhor queria era a trabalhar a formação dessas pessoas que já atuavam nesses grupos?

Ermanno Allegri – A ideia era a seguinte: se nós queremos chegar até a imprensa, se queremos fazer frente diante daquela informação que o governador estava vinculando, devemos ter um canal permanente com os meios de comunicação. Não seria levando um documento até eles que mudaríamos as informações que eram veiculadas sobre o Ceará. No caso de ter o documento pronto e entregue, seria noticiado um dia e, pronto, acabaria a conversa. Por isso, devemos ter esse canal de comunicação permanente, porque nós, das pastorais sociais, estávamos fazendo um trabalho muito bom, com sindicatos, movimentos sociais.

E qual foi o formato que escolhemos? No interior e na cidade, nas periferias, as pessoas escutam rádio, não têm o hábito de ler jornal. Assim, fazíamos toda semana umas 10 ou 12 notícias sobre aquilo que estávamos fazendo, não essas notícias sobre acidentes ou crimes. Nossa pauta era o que a Pastoral da Terra estava fazendo, por exemplo, em Iguatu, onde está sendo construída uma barragem. Como se opor, se não à barragem, ao despejo das pessoas? E a Pastoral Operária, naquela greve em que morreu um operário, o que ela fez nesse caso? E a Federação dos Trabalhadores Rurais, que cursos de formação estava promovendo? Enfim, eram essas notícias que reuníamos.

Foi diante dessas notícias que uma jornalista teve a ideia de formatarmos esses conteúdos para o rádio, para alcançarmos o maior número de pessoas. E respeitávamos o formato, pois fazer notícias para rádio era texto de no máximo 10 ou 12 linhas. Começamos a mandar para as rádios. E foi um sucesso! Assim, os jornalistas de jornais começaram a reclamar e queriam saber por que não mandávamos para eles também. Bem, começamos a mandar.

IHU On-Line - Esse apelo pelas informações de vocês era feito pela mídia tradicional?

Ermanno Allegri - Chegamos a ter nossas notícias na primeira página de jornais locais, como O Povo, o Diário [do Nordeste]. Porque isso era notícia. A dificuldade era convencer o pessoal das pastorais sociais e movimentos de que aquilo que estavam fazendo era notícia. Eu me lembro de um encontro da Pastoral da Terra do Ceará, em que eram sete ou oito dioceses, e o pessoal contava o que estava fazendo. 

A agência já existia, mas eu estava conhecendo o que estavam fazendo somente ali. Eu me indignei: "E vocês, fazendo tudo isso e não me mandam nada”. E me questionaram: "Mas que notícia é essa?”. O quê?! Fiz uma lista do que cada um havia dito sobre suas ações e mostrei que só ali havia 12 notícias. "Ah, isso é notícia...”, diziam eles.


Valor da notícia

Não se considera notícia o que se faz diariamente, pois é o comum, mas, certamente, isso é que é notícia. Por quê? A nossa linha de trabalho era: vamos mostrar o que fazemos de bom e positivo, de organização, de conscientização, e isto, além de motivar outros, também serve para colocarmos na sociedade um sangue novo, para que a sociedade tenha mais esperança. 

Porque uma boa informação não é aquela que trazem os programas policiais sobre tiros e mortes, em que o repórter corre com policiais, perde o fôlego e aponta o ladrão lá no fundo (da imagem). Quem vê isso faz o quê? Se fecha dentro de casa e não sai mais. Já, se você dá um tipo de notícia diferente, cria nas pessoas uma esperança. As pessoas pensam: tem coisa errada, mas também tem coisa boa.


Essa orientação foi que fez sucesso com muita gente, mas não só isso: também motivou sindicatos, organizações não governamentais e movimentos sociais a terem uma assessoria de imprensa própria. Descobriram que eles podem chamar os jornalistas, mostrarem o que faziam e o jornalista iria entender o valor daquela notícia. Aliás, com o material que produziam, já enviavam direto para os veículos de comunicação, sem passar pela AnotE.

IHU On-Line – Como surgiu a Adital?

Ermanno Allegri - Depois de certo tempo, ainda na AnotE, passamos a publicar as notícias e, na última página, um artigo. Em 1999, enquanto o Frei Betto estava na Itália, um empresário o procurou e sugeriu que fizesse, no Brasil, uma agência de notícias, que mostrasse as ações da Igreja no país. Existia uma agência chamada Adista, na Itália, que serviria de modelo. Esse empresário nos relatou que, através do que via na Adista, observou como a Europa estava explorando a América Latina. Aliado a isto, esse empresário conheceu a Teologia da Libertação e ficou fascinado, odiava a hierarquia de Igreja e, ao ver essa Teologia, se sentiu atraído pela nova linha.

O empresário acabou vindo para São Paulo com o diretor da Adista, para nos apresentar uma proposta. Queriam fazer uma agência nos padrões da Adista, que, naquele tempo, noticiava mais coisas de Igreja. Com essa proposta de noticiar Igreja, ficamos meio em dúvida. Pensei em recusar, já que tocava uma agência como a AnotE com a sociedade e fazer uma agência para a América Latina, somente para falar de Igreja, soava estranho. 

Durante o período do encontro, foi publicado um artigo do Frei Betto na Folha de São Paulo. E, enquanto conversávamos com eles, explicando que não era esse tipo de trabalho que queríamos fazer, que queríamos envolver a sociedade e não só a Igreja, mostramos o artigo e dissemos que, se esse mesmo artigo saísse nos boletins das paróquias, ele ficaria só entre nós, os religiosos, e não sei quantos iriam ler. Agora, só a Folha imprime, ou imprimia na época, 400 mil cópias. A estatística diz que a cada jornal que se vende, três pessoas leem; então, são 1 milhão e 200 mil pessoas que podem ler o artigo do Frei Betto.

O representante da Adista ficou nervoso, questionando se o trabalho de Igreja não interessava. Claro que interessa, mas em outro contexto. Quem entendeu melhor foi o empresário. Ele quis saber como faríamos uma agência assim para a América Latina, envolvendo sociedade civil. Disse que era preciso se articular, já trabalhávamos com sindicatos e entidades do tipo. No fim, ele topou financiar e ali começou o trabalho, dentro do espírito da AnotE, de ter a sociedade envolvida e mostrar o que se faz de bom na América Latina.

IHU On-Line - De que forma o Fórum Social Mundial influenciou a criação da Adital?

Ermanno Allegri – Foi nesse contexto (enquanto acertavam detalhes para iniciar os trabalhos) que aconteceu o primeiro Fórum Social Mundial. Participando do encontro, percebi que esse era exatamente o momento de uma agência como a Adital. Essas eram as fontes de informação da Adital; havia 870 oficinas naquela semana do Fórum e o que impressionou era a variedade de oficinas, variedade de pessoas. 

Fiz contatos e, a partir desse Fórum, começamos a recolher listas de pessoas que trabalhavam com direitos humanos no Brasil e em nível internacional, pessoas que trabalhavam com políticas para mulheres, com os indígenas. Assim fomos montando um banco de dados com uma série de fontes, e — acho eu — ninguém tem tantas fontes de trabalhos sociais na América Latina como nós.

                                                          
O papel da Igreja

Conseguimos fontes muito boas porque são aqueles que trabalham diretamente, que construíram a cidadania e que, na macropolítica, representam os países com os governos, digamos, progressistas. Sem esses, não nasceria a América Latina, que, aliás, hoje, já está um pouco diferente. Foi então que descobrimos uma coisa muito importante: se a Igreja não tivesse tido a atuação que teve, dando força a todo esse movimento e disposta a trabalhar junto com as entidades cristãs e não cristãs para organizar a sociedade, a América Latina não seria o que é hoje. Poderia ter sido de outro jeito, mas fato é que a Igreja foi uma das grandes forças.

Tanto é que fizemos, em 2003 e 2004, uma reportagem em cada país sobre as ações da Teologia da Libertação. O objetivo era mostrar que o trabalho que havia começado há 20 ou 30 anos estava continuando e pegava rumos diferentes. Esse material originou até mesmo um livro.

IHU On-Line - Por que é importante levar essa informação das pastorais e movimentos para "além dos muros da Igreja”? Por que buscar esse espaço também na imprensa, na mídia tradicional?

Ermanno Allegri –Desconsiderando o fato de que trabalho na Igreja (risos)... Comecemos com o Evangelho, quando Jesus Cristo fala "o que eu digo aos seus ouvidos, publiquem pelos telhados”. E isto não com a finalidade de aparecer, mas, como diz no Evangelho, para que vejam suas obras boas e glorifiquem o Pai do Céu. Então, nós devemos publicar o bem que fazemos, para que as pessoas percebam que existe o bem na sociedade.

Segunda questão: análise sociológica. É preciso criar na sociedade, de forma ativa e organizada, uma sensação, um clima bom na relação com as pastorais sociais, que eram condenadas até dentro da Igreja, para mostrar que essas são as pessoas que, de fato, querem a mudança na sociedade e que temos de participar desses movimentos. Assim, além da análise religiosa, a análise social foi fundamental para dizer que a sociedade precisa de um empurrão.

Nós trabalhamos muito em parceria com a sociedade civil porque, de fato, seria impossível não trabalhar. A Pastoral da Terra, por exemplo, trabalha com os sem terra, com sindicatos, com a iniciativa de trabalho rural. Então, se tivéssemos, por exemplo, problemas em uma barragem, numa situação em que pessoas eram despejadas, a Pastoral da Terra nunca ia sozinha até o local. Estávamos ao lado do sindicato, da organização social da área e se fazia um trabalho conjunto.


IHU - Unisinos
Instituto Humanitas Unisinos

(Com a Adital)

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