Impeachment Claustrofóbico


                                                        
O Brasil chegou ao final de 2015, primeiro ano do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, em meio a uma das mais profundas crises do país. Política, econômica, social, ética, ambiental. Crise, além do mais, permeada por uma lógica perversa, aprofundada após a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder: a lógica do “nós contra eles”, por muitos apelidada como “Fla-Flu”.

Escândalos de corrupção, degradação da política, desaceleração gritante da economia, desemprego assustador, avalanches ambientais seguiram se encadeando no ano de 2015. O processo de impeachment que agora ameaça a presidente da República é a expressão do aprofundamento e da magnitude dessa crise.

Deflagrado por Eduardo Cunha, e apoiado por Michel Temer e Aécio Neves, esse processo está sendo mobilizado como arma de chantagem política, em um Congresso afundado em escândalos e picuinhas e já desmoralizado perante a população. A extrema fragilidade da economia, com uma desaceleração que, a partir das previsões mais otimistas, deve atingir 3,5% do PIB em 2015, e com a perda de cerca de um milhão de empregos formais somente nesse ano, incentivou a atuação radicalizada e o fisiologismo ainda mais escancarado dos partidos políticos da ordem.  Uma presidente enfraquecida por escândalos de corrupção e, principalmente, por uma economia moribunda, criou a oportunidade para o bote desses partidos e, quem sabe, para o seu único e/ou derradeiro momento de glória.

Ao mesmo tempo, do lado do governismo, é mandatória a consideração de que a atual situação a que está submetido o povo brasileiro, e que vai lhe custar anos de pesada agonia, não é de maneira alguma fruto de acontecimentos fortuitos.

São muitas as análises e veículos que já há bastante tempo vêm, mais que destrinchando, denunciando os limites deste que se chamou durante tantos anos de “desenvolvimentismo” das gestões petistas. Calcado, dentre outros, no incentivo ao consumo, a partir da abertura de numerosas linhas de crédito, criou forte sensação de “empoderamento” em classes menos favorecidas. Essas classes viram seus padrões de consumo se modernizarem. Entretanto, suas oportunidades não foram expandidas com melhor educação pública ou com a melhoria do atendimento à saúde.

A exportação de commodities agrícolas, outro pilar da era “desenvolvimentista”, ao mesmo tempo em que se aproveitou de um período de maré alta na economia internacional, manteve o país atado a uma posição subalterna na divisão internacional do trabalho. Vários sociólogos e economistas chegaram a prognosticar e denunciar essa “reprimarização” de nossos padrões de comércio.

É inegável que, pela primeira vez na história, avanços sociais retiraram milhões da miséria e da pobreza absoluta. Entretanto, até os defensores do ciclo petista e do governo, com olhar mais crítico, reconhecem que tal ocorreu de forma descolada de medidas emancipatórias, sem tocar nos problemas estruturais da desigualdade social. O mar de lama e a recessão que tomam conta do país ameaçam agora as grandes bandeiras do lulismo, petismo e associados, entre elas, a própria Bolsa Família.

E o que dizer ainda das alianças reiteradas dos mandatos petistas com setores de direita ao longo de tantos anos? Alianças que não se restringem àquela com alguém tão desqualificado quanto Eduardo Cunha, com o qual se tentou, até a última hora, uma barganha para que não aceitasse, como presidente da Câmara, o pedido de impeachment.

A campanha de 2014 é o exemplo mais revelador do peso dessas alianças. Qualquer um que tivesse se detido por alguns segundos no programa de governo da candidata Dilma poderia verificar que ele estava fielmente enquadrado pela agenda conservadora e liberal. Os próprios debates entre os candidatos à frente nas pesquisas deixavam transparecer o compromisso com o status quo perante os grandes grupos econômicos nacionais e internacionais. 

Do contrário, por que a campanha de Dilma teria recebido tamanha soma de recursos de empreiteiras, mineradoras, do setor financeiro etc.? As promessas da atual presidente, de que não mexeria com os direitos dos trabalhadores, foram, portanto, desmentidas bem antes de seus primeiros dias de governo, quando nomeou Joaquim Levy e Kátia Abreu para pastas importantíssimas.

As tão comentadas “pedaladas fiscais” são nada mais do que “pedaladas políticas”, resultantes desse quadro de enganos e distorções. Os empréstimos de bancos públicos ao governo, considerados ilegais por infringirem a Lei da Responsabilidade Fiscal, e que agora abrem caminho para o impeachment, foram justificados como forma de não atrasar repasses para o Bolsa Família. 

Tal atraso certamente não teria ocorrido não fosse a agenda liberal que o governo assumiu desde o começo, avalizando a Lei de Responsabilidade Fiscal e priorizando os compromissos com o grande capital. Basta ver o percentual do orçamento público destinado ao Bolsa Família, assim como a áreas como saúde e educação, em comparação àquele sagradamente destinado ao pagamento de juros e amortizações aos grandes investidores do mercado financeiro, os detentores da dívida pública.

Incontáveis são os fatos, as situações e os exemplos que podem ser citados para demonstrar que o governo Dilma não é, definitivamente, um “governo em disputa”. A ideia do “mal menor” fica também cada vez mais entrincheirada diante do contexto bem mais complexo e que desmente essas crenças arraigadas, sejam fruto de ingenuidade ou má fé.

Permaneça ou não no cargo a atual presidente Dilma, o fato é que continuarão assegurados os compromissos com o grande capital. O novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, nem bem empossado, e sob as ameaças de aumento do dólar e queda das Bolsas, já veio a público reiterar sua fidelidade ao ajuste fiscal.

Um eventual processo de impeachment, por sua vez, seguirá como uma guerra fatricida, onde cada uma das partes tentará sangrar a outra até a última gota. O verdadeiro show de horrores que se insinua pela frente deverá ser muito bem apropriado pela nossa ‘sociedade do espetáculo’. E os únicos beneficiários desse processo serão os nacos do grande capital, representados por ambas as partes em aparente conflito.

Não será possível aos trabalhadores e setores progressistas seguirem um rumo de verdadeira conscientização enquanto estiverem presos aos maniqueísmos e esquemas binários de pensamento. Trata-se de esquemas inócuos para darem conta de quaisquer realidades, esterilizando a capacidade de percebê-las em sua complexidade. E a reiteração constante desses esquemas nesses últimos anos - desde que a esquerda representada pelo PT subiu ao poder e embaraçou o sentido e atuação de esquerda e movimentos sociais - tem sido desastrosa. Desestrutura-se, a cada dia, e a passos largos, a possibilidade de avanço de um pensamento e movimentação de fato críticos.

Aos trabalhadores brasileiros interessa fugir do engodo das versões ardilosamente pensadas para capturá-los na comoção. Só a radicalização da crítica poderá encontrar instrumentos políticos e de organização necessários para enfrentar um momento em que se escancararam tantas e tamanhas contradições do desenvolvimento brasileiro.

(Editorial do Correio da Cidadania)

http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11327:editorial231215&catid=27:editorial&

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