Neruda foi morto porque sairia do Chile para denunciar Pinochet, diz ex-assessor do poeta


                                                                    
Victor Farinelli

Manuel Araya, ex-assessor de Pablo Neruda, diz que poeta foi envenenado e que fundação que gere  a memória do artista ganha dinheiro com versão de morte natural, o que o grupo nega.

O nome de Manuel Araya passou a formar parte da biografia de Pablo Neruda a partir de 2011, depois que uma denúncia sua para a revista mexicana Processo afirmava que o poeta foi assassinado pela ditadura de Pinochet, e não que morreu por consequências de um câncer de próstata, como dizia a versão oficial.

Quatro anos depois, com uma investigação avançada a respeito da causa da morte de Neruda, e devido à recente revelação de um documento do Ministério do Interior chileno, afirmando que é a versão de assassinato é bastante provável, seu nome e sua versão voltam a ganhar as manchetes, principalmente da imprensa internacional – ele se recusa a falar com meios chilenos.

Manuel Araya foi um jovem militante da Juventude Comunista, designado pelo partido em 1972 para ser motorista e guarda-costas pessoal de Pablo Neruda, quando este voltou ao Chile para apoiar o governo de Salvador Allende, que já sofria as primeiras pressões pré-golpe de Estado. 

Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, ele conta a sua versão dos acontecimentos entre os dias 17 e 23 de setembro de 1973 – a última semana de vida de Neruda –, critica a Fundação Neruda e o Partido Comunista com relação às suas posturas para com as investigações da Justiça, e afirma que o poeta tinha a determinação de denunciar Pinochet no exterior, e por isso foi assassinado.

Opera Mundi: Neruda chegou à Clínica Santa María dias depois do golpe de Estado contra Allende. Como estava a saúde do poeta nesse momento?

Manuel Araya: Eu sempre gosto de começar esclarecendo esse ponto, para desmentir a raiz do argumento oficial, de que Neruda foi internado quando estava agonizando. Não foi assim, e quem viveu aquela história sabe disso. Neruda tinha um câncer que estava controlado. O promotor [Mario] Carroza conseguiu recuperar todos os exames médicos da época, estão no processo, inclusive um que é crucial, do médico pessoal dele, doutor Roberto Vargas Salazar, que o pesou dois dias antes de ir à clínica, e ele tinha 103 quilos – o laudo oficial sobre a morte do poeta, que defende a tese da morte por câncer, afirma que o poeta pesava pouco mais de 50 quilos quando faleceu, quatro dias depois de dar entrada na clínica. O mesmo doutor Salazar recomendou passar pela clínica, porque Neruda diz a ele que já tem viagem marcada ao México, o doutor atendia na Clínica Santa María e pediu que ele fosse fazer uns exames mais detalhados, para continuar controlando a doença no exílio.

OM: A viagem ao México era uma certeza.

MA: Neruda me pediu para levá-lo à clínica no mesmo dia em que o embaixador mexicano [Gonzalo Corbalá] foi pessoalmente à casa de Isla Negra, e entregou o oferecimento de asilo do presidente Luis Echeverría. Quando o golpe aconteceu, a primeira reação de Neruda foi a de tristeza, havia morrido seu amigo Allende e todo um projeto político que foi a razão pela qual ele voltou ao Chile. Mas, nos dias posteriores, ele recuperou o entusiasmo, e ele tinha uma rede de contatos no país que passavam a ele as informações que a Junta Militar e a imprensa oficial escondiam. Ele sabia dos demais companheiros que estava sendo perseguidos e exterminados.

Então, decidiu que sairia do país para denunciar a ditadura, usando sua influência como figura internacional. Conversou com a Embaixada do México, porque Corbalá era um amigo com o qual ele sabia que poderia contar, e porque queria deixar o país o mais rápido possível. Ele sabia que a ditadura queria matá-lo, porque ele era Neruda, se ele saísse do país e denunciasse tudo o que estava acontecendo no país, isso teria uma repercussão enorme, e ele era plenamente consciente dessa responsabilidade. A Embaixada da Suécia também havia oferecido asilo, mas havia todo um trâmite que poderia durar mais de uma semana até a viagem, e ele queria sair logo. Neruda estava determinado em denunciar Pinochet no mundo inteiro, preparou a viagem com Corbalá, estava tudo pronto. O primeiro erro foi aceitar o conselho do doutor, porque a internação foi o que permitiu que os agentes da ditadura pudessem envenená-lo.

OM: E quais foram os demais erros?

MA: Eu acho que talvez não tenham sido tão erros, no sentido que foram situações em que não tínhamos escolha, mas ter deixado Neruda sozinho na clínica, por exemplo, não foi correto, mas nós não tivemos escolha. Naquele momento éramos só ele, a Matilde [esposa de Neruda] e eu, os demais companheiros do partido que trabalhavam na proteção dele já haviam sido capturados, e alguns já haviam sido assassinados, como o meu irmão. Na manhã do dia em que faleceu [23 de setembro], ele me pediu para levar a Matilde a Isla Negra, para buscar alguns pertences que queria levar ao México, e também os originais da sua biografia [“Confesso que Vivi”], que ele deixaria com Corbalá, para que ficassem resguardados na Embaixada do México. Eu quis ficar, e buscar outra pessoa para levar a Matilde, mas ele disse que não havia problema, ele se sentia seguro na clínica, e disse que o importante era proteger a Matilde na viagem a Isla Negra. Seu maior temor era que pudesse acontecer algo nesse caminho.

Depois de trazer tudo o que Neruda pediu, Matilde foi até o hotel Santa Helena, que ficava ali perto, para usar o telefone, e foi quando ele disse que havia entrado alguém que ele achava que era um enfermeiro, que lhe havia dado uma injeção, e disse “venham rápido, porque essa injeção me fez mal, estou me queimando por dentro”. Isso foi mais ou menos às 15h, e nós voltamos o mais rápido possível. Chegamos por volta das 18h em Santiago, e lá na clínica aparece outro médico que nós não conhecíamos, e ele nos diz que Neruda está grave, e me pede para conseguir uma medicação que a clínica não tinha, e que havia que buscar num laboratório no bairro de Recoleta.

A Matilde estava desesperada. Quando entramos no quarto, vimos o abdômen dele com um vermelho forte, sendo que ele estava bem quando partimos, pela manhã. Ela me pediu para ir urgentemente buscar o remédio. Quando sai, poucas quadras depois, sofri uma emboscada e fui levado ao Estádio Nacional. 

Quando fui preso, entendi tudo, entendi que aquilo era uma operação para matar Neruda. No dia seguinte, o cardeal Raúl Silva Henríquez, da Paróquia da Solidariedade [órgão da Igreja Católica que ajudava os presos políticos], visitou o estádio e me reconheceu, e tentou me libertar. Ele me trouxe a notícia que eu já sabia, que Neruda havia falecido, e juro que depois o que eu mais queria era morrer. Entre outras coisas, porque havia fracassado na minha missão de protegê-lo. O cardeal só conseguiu a minha liberdade semanas depois, mas eu já estava arrasado, e morto por dentro.

OM: Quem questiona a sua versão usa o argumento de que você só apareceu com essa história agora, e pergunta por que não a contou antes.
MA: Quem questiona a minha versão? O promotor Carroza acredita na minha versão, e não só pelo que eu contei, ele tem os documentos, os exames médicos, o comunicado em que o presidente Echeverría [do México] ordena a Embaixada a entregar o asilo a Neruda e prestar toda a assistência necessária para que ele saísse do país. Existe somente um questionamento à minha versão, que é o da Fundação Neruda.

OM: Mas por que você não contou antes?

MA: Porque não era fácil. Primeiro, porque durante a ditadura foi impossível. Se eu fosse Neruda, e pudesse buscar a imprensa internacional, que era a única que dizia a verdade do que acontecia no Chile, talvez fosse o caso, mas agora, com ele morto, com o Partido Comunista arrasado e clandestino, o que eu podia fazer? Eu não era ninguém, e tinha sorte de estar vivo. Não conseguia trabalho porque meu nome estava marcado, as empresas tinham lista de pessoas consideradas perigosas porque tinham ou tiveram militância.

Essa é uma das perseguições que se fala muito pouco, porque a ditadura não matou fisicamente a todos, mas quem não morreu com bala foi desacreditado, foi perseguido moralmente. Eu só consegui um emprego novamente em 1987, passei anos vivendo da ajuda de alguns familiares, e cheguei a viver nas ruas, num período mais difícil. 

Depois, quando voltou a democracia, eu pensei em contar a história, mas era difícil. A Matilde já havia falecido, e eu não sabia como me apoiar em alguém que pudesse confirmar a minha versão, e nem tinha documentos, só a minha palavra. Somente em 2011, com a ajuda de um jornalista interessado na história, e somente porque ele trabalhava para um jornal mexicano, porque eu não confio na imprensa chilena, começamos a escrever o relato e a buscar as evidências. Conseguimos o suficiente para convencer o promotor Carroza a abrir a causa. Daí por diante, ficou mais fácil investigar, e eu me senti mais seguro em contar tudo o que sabia.

OM: E por que a Fundação questiona a sua versão?

MA: Porque a Fundação tem feito de tudo para obstaculizar as investigações. Porque desde que o promotor Carroza instalou o processo, ela tem sido uma barreira constante. Tentaram impedir todas as exumações aos restos, tentaram entorpecer a investigação, apresentaram supostas testemunhas com histórias completamente falsas, que depois não se sustentaram, mas que atrasaram o avanço dos trabalhos da Justiça. 

A Fundação Neruda não quer que a verdade seja descoberta, porque eles transformaram o legado de Neruda num negócio, e um negócio muito lucrativo. Visitar uma casa-museu é caríssimo, e comprar souvenirs mais ainda. O faturamento deve ser astronômico, e o mais triste é que Neruda não queria isso. Neruda queria que seu legado fosse entregue aos trabalhadores do Chile – aos sindicatos de trabalhadores mineiros principalmente, porque ele foi senador pelas províncias do norte, ele representou esses trabalhadores no Congresso. Provavelmente, a Fundação Neruda avalia que descobrir a verdade vai afetar o negócio, o que é uma visão muito mesquinha.

OM: E o Partido Comunista, no qual você e Neruda militaram, que tipo de apoio tem dado a você durante a causa?

MA: Nenhum, infelizmente. Temos a ajuda jurídica do advogado Eduardo Contreras, que participa da causa em nome do PC, mas às vezes eu acho que ele atua mais por iniciativa própria do que por uma convicção do partido, porque nunca houve um gesto, um comunicado, um reconhecimento público por parte dos líderes, alguém aparecer e defender oficialmente a verdade, nada. Eles sabem que estamos com a verdade, porque o Contreras sabe, ele conhece os documentos, mas nunca um presidente ou um deputado do PC, nem essa moça mais jovem [Camila Vallejo], tem coragem para vir a público e dizer “Neruda foi assassinado”. Talvez agora, com esse documento do Ministério do Interior, as coisas mudem. Vou continuar frustrado, por não terem acreditado antes, por ter precisado o governo reconhecer primeiro para que o meu partido fizesse um gesto, mas já seria algo.

OM: E o que você espera por parte do governo? Ou da presidente Michelle Bachelet?

MA: Eu não espero nada. Talvez deveria, Neruda foi o maior poeta da América Latina, e era chileno, e foi assassinado pela ditadura que marcou o Chile no mundo. Quando você sai do Chile, percebe que as pessoas se referem ao país por duas associações automáticas, por duas figuras, a de Neruda, pelas quais têm uma boa imagem nossa, e a de Pinochet, pela qual têm uma péssima imagem. E elas estão ligadas, porque um matou o outro. Pinochet mandou matar Neruda, porque ele era um perigo para aquela ditadura recém-iniciada. Talvez o correto fosse esperar que o governo atuasse para estabelecer essa verdade, pela importância que Neruda tem para o país, ou somente porque é importante restabelecer a verdade. Mas não sei, prefiro não esperar nada.

Outro lado

Com relação ao afirmado por Manuel Araya durante a entrevista, a reportagem de Opera Mundi procurou a Fundação Neruda. “As declarações emitidas pelo senhor Manuel Araya são falsas. A Fundação Neruda está interessada em que se conheça a verdade, e por isso vem acompanhando e apoiando a investigação do promotor Mario Carroza em tudo aquilo que foi solicitado até agora. O senhor Manuel Araya ataca constantemente a Fundação há alguns anos, por motivos que desconhecemos”, afirmou o órgão.

A reportagem também procurou o Partido Comunista, e quem respondeu em nome do Partido foi o próprio advogado Eduardo Contreras, que afirmou que sua “participação na causa não se trata de uma iniciativa pessoal, ma sim da participação ativa e entusiasmada do Partido Comunista nos trabalhos que buscam esclarecer a morte de uma figura tão importante como Pablo Neruda para o país e para o partido. 

Se nenhum dirigente comentou nada, ou se o PC como instituição não declarou nada, talvez seja por prudência, por esperar uma resolução definitiva, mas nunca por omissão. O Partido Comunista acredita na versão do assassinato de Neruda, e está esperando o pronunciamento da Justiça para se pronunciar sobre o tema”. (Com Opera Mundi/Diário Liberdade)

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