A primavera árabe afoga-se no Mediterráneo

                                                             
                                                                      Reuters/Correio da Manhã/Divulgação                  


 
Guadi Calvo

Não faltam reportagens sobre a tragédia da emigração clandestina no Mediterrâneo. O que as câmaras não mostram e os jornais não contam é onde começou a penúria desses desgraçados. Todos consideram normal que na África sempre tenham existido miseráveis e que muitos dos seus filhos abandonem os seus lares. Que no Médio Oriente sempre tenham existido guerras e os seus filhos procurem outra vida abandonando as suas terras. Porém, nunca tantos como nestes últimos anos. Em 2014 foram resgatados do mar entre cento e cinquenta e cento e setenta mil migrantes. E acredita-se que cerca de seis mil e quinhentos morreram afogados em sucessivos naufrágios.


O mundo chora quando em todos os jornais, em todos os shows periódicos, nas redes sociais, pelo menos do Ocidente, são mostrados os naufrágios do Mediterrâneo e aqueles que não tiveram a sorte de chegar sem que se note, ainda que tenham tido a sorte de chegar ao local seco, porém molhados.

Despojando-os da pouca dignidade que ficava, as câmaras gravam os olhares apagados, os olhos vermelhos, os semblantes quebrados, as peles rachadas, os gestos titubeantes daqueles que se aventuraram a abandonar a miséria e a violência de seus países.

Com medo, com terror, com fome, com angústia, com desespero, os resgatados recebem das mãos dos socorristas as mantas térmicas e até a primeira sopa quente como aviso de que suas penúrias terminaram por um segundo. Depois, terão outras, porém secos e em terra firme. Sem dúvida, para os imigrantes o pior já passou.

Em um ano já são mais de quarenta e dois mil resgatados do mar e mais de dois mil os que não tiveram essa sorte. Nada se sabe de quantos chegaram com êxito a alguma costa do sul da Europa e puderam esconder-se entre tantos, entrar e agora sobreviver sozinho, escapando dos guardas, das polícias, dos agentes de migrações que, por mais perversos, nunca tanto quanto as doenças, os senhores da guerra ou os salafistas que tanto no Oriente Médio como na África finalmente dariam conta deles.

O que não mostram as câmaras, o que não contam os jornais é por que começou a penúria dos desgraçados. Claro, todos sabem que na África sempre existiram miseráveis e muitos de seus filhos resolvem suas vidas abandonando seus lares; no Oriente Médio, todos sabem, sempre existiram guerras e seus filhos resolvem suas vidas abandonando seus lares.

Porém, nunca tanto como nestes últimos anos. Em 2014 foram resgatados do mar entre cento e cinquenta e cento e setenta mil migrantes; acredita-se que cerca de seis mil e quinhentos morreram afogados em sucessivos naufrágios. Os números referentes àqueles que conseguiram entrar sem serem descobertos ou que morreram sem serem encontrados são impossíveis de saber. Por isso, nada mais inexacto que os números para estes casos.

A partir do derrube da Revolução Líbia e do assassinato de seu líder, o Coronel Mohamed Khadafi em 2011, no marco da tão elogiada Primavera Árabe, como reiteramos uma infinidade de vezes, a Líbia, a nação mais progressista da África, passou a se converter em um Estado Falido, sem governos reais, sem instituições e sem possibilidades para sair dessa situação.

É difícil que uma nação das características da Líbia pudesse suportar a hostilidade a qual foi submetida desde dezanove de Março de 2011, quando teve início o bombardeio aeronaval que continuou durante os sete meses seguintes. Os Estados Unidos e a OTAN realizaram mais de dez mil missões de ataque, utilizando mais de quarenta mil bombas e mísseis, fundamentalmente contra alvos civis. 

Soma-se à ofensiva aérea os milhares de mercenários, com selo da Al-Qaeda, recrutados e pagos pela Arábia Saudita e o então chefe de sua inteligência, o príncipe Bandar al-Sultán, vinte e cinco anos embaixador de seu país em Washington.

A Líbia, para as potências ocidentais, particularmente para os Estados Unidos e a França, responsáveis fundamentais pela queda do governo líbio e pela actual situação, se converteu em uma jazida de petróleo, a qual tentam esgotar antes que a situação se converta verdadeiramente incontrolável. O país conta com as reservas de petróleo mais importantes da África e são particularmente valiosas por sua qualidade e o baixo custo de extracção, assim como o gás.

No momento em que se iniciaram os ataques contra o Estado líbio, este contava com uns duzentos bilhões de dólares depositados fundamentalmente em bancos estadunidenses e britânicos, que após serem confiscados por esses governos, se evaporaram em labirintos burocráticos e sem dúvida ajudaram muito a suportar a profunda crise económica que tanto os Estados Unidos e a Europa estão vivendo desde 2007.

A nova Líbia fragmentada pela ausência de um governo, conta com dois: um que possui base na cidade de Trípoli, vinculado à Irmandade Muçulmana, e o de Tobruk, ligado à visão ocidental, “moderado”. Trípoli tem o apoio da Turquia e Qatar, o outro do Cairo, cuja força aérea atacou as colunas de milicianos salafistas que tentaram aproximar-se de Tobruk.

No resto do país, organizações de contrabandistas, narcotraficantes, traficantes de armas (dos arsenais do coronal Khadafi sai uma infinidade de armamento para terroristas e grupos de criminosos de toda África, especialmente Mali e Nigéria) e de pessoas, negocia com as tribos que desde sempre foram as donas desses territórios para poder refugiar-se e utilizar alguns corredores por onde transitar com sua mercadoria.

A localização geográfica da Líbia é privilegiada já que não deixa de ser uma grande ponte que une o Mediterrâneo com o Sahel e a África Subsaariana. Sua situação interna começa a afectar directamente a segurança de alguns países vizinhos, como Argélia e Tunísia, onde a actividade de grupos vinculados ao Estado Islâmico se encontra crescendo. 

Prova disto foi o ataque ao Museu de Bardo, que deixou vinte e dois mortos, quase todos turistas europeus, em 18 de Março passado. Neste último sábado 23, no regimento de Bouchoucha, próximo do Museu de Bardo, um soldado tunisiano abriu fogo contra seus companheiros deixando oito mortos e dez feridos. Com velocidade suspeita, as autoridades determinaram que não se tratava de um ataque terrorista, mas que devia ser um surto psicótico do efectivo.

Um mundo Mad Max

Após o desespero pelos “humanitários” bombardeios da OTAN, o povo líbio passou a viver em um mundo que se assemelha tragicamente à saga cinematográfica Mad Max, onde grupos que ficaram com os restos de um mundo pós-guerra nuclear disputam o poder.

Com guerra nuclear ou não, hoje o líbio médio vive sem futuro e com a única ambição de conseguir entrar em algum barco que, mesmo colocando sua vida em risco, possa deixá-lo em algum lugar das costas europeias. 

A monumental desordem fabricada pelo pacto contra Khadafi provocou o surgimento de organizações de traficantes de pessoas, que utilizam as amplas costas líbias, particularmente pequenos portos pesqueiros do oeste como Garabuli, Sabratha e Zuara, para lançar ao mar milhares de pessoas que tentam chegar à Europa apenas trezentos quilómetros ao norte, como a ilha italiana de Lampedusa.

São entre cem mil e duzentos mil pessoas, em diferentes localidades da Líbia, que esperam um lugar para embarcar rumo à Europa. Para isto utilizam tudo que flutua, desde barcos de pesca, lanchas ou barcos improvisados. Tudo serve para afastar-se da devastação, sem importar o risco.

Calcula-se que a idade média daqueles que tentam fugir é de vinte e quatro anos, sendo homens que correm o sério perigo de serem recrutados por algum grupo de criminosos ou pelo Estado Islâmico que começou a aparecer no litoral líbio.

Porém, não são só líbios que buscam um lugar nessas embarcações. Nos acampamentos improvisados esperam inúmeros homens e mulheres de diferentes nacionalidades africanas e asiáticas. Muitos deles são do Senegal, Gâmbia, Sudão, Somália, Eritreia e Etiópia, República Centro Africana. Iémen, Síria, Bangladesh, que fogem fundamentalmente de guerras e ditaduras.

Do Senegal, por exemplo, a viagem demora mais de dois meses, com uma infinidade de obstáculos a serem vencidos no percurso de três mil quilómetros de caminhos que cruzam regiões desérticas, com constantes trocas de veículos, especialmente caminhões, onde a viagem é apertada, com pouca água e menos alimento. 

Os migrantes tiveram de pagar subornos às autoridades em cada fronteira que cruzaram e negociar com grupos armados dispostos a sequestrá-los. Muitas das mulheres foram violentadas, talvez as que tiveram melhor sorte. Outras foram directamente introduzidas nas redes de tráfico, com aceitas relações com os grandes proxenetas da Europa.

Os migrantes, antes de subir nas embarcações, são despojados de seus telefones celulares. Quem pilota leva apenas um GPS e um telefone via satélite com o número dos guarda-costas italianos para pedir auxílio, que apenas saem rumo às águas líbias indo para operações de resgate, como a Tritão ou Mare Nostrum. Estima-se que os traficantes obtém uma média de noventa mil dólares por cada embarcação fretada.

A Europa apenas pode conter as gigantes marés migratórias onde se produzem constantes naufrágios, como o ocorrido em meados de Abril último, quando uma barcaça de trinta metros de comprimento afundou a duzentos quilómetros de Lampedusa, deixando novecentos afogados. O número exacto de mortos é desconhecido, pois não se sabe quantos viajavam na realidade. Entre os corpos resgatados, foram encontrados entre quarenta e cinquenta crianças e duzentas mulheres.

Sem a ajuda de ninguém

Os ministros de Assuntos Exteriores e de Defesa da União Europeia (UE) acordaram uma missão militar naval com a finalidade de desmantelar as redes criminosas de traficantes, sem contar com o consenso do Conselho de Segurança da ONU e o das autoridades líbias para actuar em suas águas territoriais. Neste momento, a discussão se centra em destruir ou não as embarcações apossadas pelas máfias.

Chama a atenção que a União Europeia tenha conseguido deter com tanto êxito o problema da pirataria somali no golfo de Áden, com a Operação Atalanta, que reduziu de cento e setenta e quatro ataques a barcos mercantes em 2011 a apenas dois em 2014. Talvez o lobby dos armadores europeus e das grandes companhias pesqueiras, também fundamentalmente europeias, que operam no Índico em uma zona que abarca mais de 3.200 milhas náuticas, em águas internacionais e também nas águas da Somália, Iémen, Moçambique, Ilhas Seychelles, Quénia e Tanzânia, tenha maior poder de lobby que os imigrantes africanos.

Federica Mogherini, a actual “chanceler” da União Europeia, se encontra negociando tanto com a China e Rússia, membros do Conselho de Segurança, para que a operação que a Europa pretende lançar contra as máfias de traficantes possa ser empreendida.

Por outro lado, sabe-se que o Estado Islâmico se tornou forte em Misrata, principal porto onde partem as embarcações de imigrantes, e ao mesmo tempo se apoderou de Sirte, outra população costeira que tem um particular valor simbólico de ser o lugar de nascimento do Coronel Khadafi.

Sabemos claramente que não importa à Europa a sorte dos desgraçados que se amontoam nos portos líbios. Apenas interessa acabar com a possibilidade de que estes flagelados continuem chegando a suas costas e para isso implantaram todos os recursos possíveis, ainda que se trate de afogar a Primavera Árabe que eles propiciaram no Mediterrâneo.

Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org/2015/06/24/la-primavera-arabe-se-ahoga-en-el-mediterraneo/
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB) 

(Com odiario.info)

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