Redução da maioridade penal: “A lógica do Estado Penal é encarcerar e explorar mão de obra”

                                           
 Gabriel Brito

Um dos grandes focos de histeria da direita brasileira aproveita o ano de retrocessos generalizados e avança. Trata-se da PEC 171, que visa reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, a ser votado na Câmara dos Deputados, sob extrema euforia da bancada do conservadorismo, tanto político como econômico. Para falar do espinhoso assunto, o Correio entrevistou Givanildo Manoel, militante dos direitos humanos de longa data e membro do “Tribunal Popular – o Estado no Banco dos Réus”, articulação que já promoveu julgamentos simbólicos de famosos crimes das forças oficiais brasileiras.

“Nesse momento, a redução da idade tem um sentido muito mais perverso, que faz parte da constituição de uma política do controle permanente dos filhos dos trabalhadores e, mais que isso, encarcera a juventude para explorar sua mão de obra, constituindo assim uma forma de funcionamento do Estado, o Estado Penal, que encarcera para explorar a mão de obra”, sustenta Givanildo.

Além de bater na tecla de que tais projetos têm forte interesse econômico, especialmente num ano de arrochos e desemprego, Givanildo alega estarmos diante de mais uma utopia neoliberal, pois a privatização da administração do sistema prisional, como dos serviços públicos em geral, também viria a reboque. Pra completar, volta a apontar para o velho apartheid brasileiro, dado que tal aumento do punitivismo estatal visará os mesmos “indesejados” de sempre.

“O que vai acontecer é a legitimação dessa barbárie, a partir de teorias que já verificamos, como o ‘direito penal do inimigo’, cuja origem é a Alemanha Nazista, e amplamente colocada em prática no Brasil. Basta ver quem são os criminalizados. São seletivamente escolhidos, ou seja, os indígenas, os negros e as negras. O próximo período, com certeza, será de ampliação dessa lógica criminalizadora, controladora, encarceradora, de exploração e extermínio, que tem em suas principais vítimas a juventude indígena e negra”, critica.

A entrevista completa com Givanildo Manoel pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Qual a sua visão sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/1993, que visa reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos? Quais seriam as consequências da aprovação e aplicação dessa proposta?

Givanildo Manoel: Essa pergunta deve ser respondida em três etapas, que podemos dividir pelo contexto da época, no sentido de falar da redução e suas consequências. A PEC 171 é um dos maiores estelionatos de direitos dos últimos anos. Considero importante entender o contexto em que essa PEC foi apresentada, para depois refletir sobre suas consequências.

Em 1992, aconteceu um grande incêndio na FEBEM (antiga Fundação Casa), no quadrilátero do Tatuapé. Na época, os meios de comunicação utilizaram o fato para fazerem o mesmo papel que cumprem hoje: jogaram a população contra os adolescentes, exigindo a redução da idade e responsabilizando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) pelo ocorrido.

Este fato foi potencializado com o Massacre do Carandiru (em 2 de outubro de 1992), dias antes do ocorrido no Tatuapé. Apesar de toda a barbaridade, a imprensa tratou os fatos de forma sensacionalista, como de costume, criminalizando ainda mais os que estavam sob a responsabilidade do Estado. E esse Estado tirou-lhes as vidas, escondendo e depois justificando as mortes com histórias falsas.

Algumas peculiaridades desse incêndio são sempre boas de lembrar: no prédio da administração da FEBEM, que ficava no quadrilátero Tatuapé, havia uma parte dos papéis do escândalo Baneser/Dersa/Metrô dos governos Quércia/Fleury, escândalo que se tratava do desvio de bilhões de dólares, documentos convenientemente queimados.

Naquele ano, na direção oposta do que pregava a mídia coorporativa, que exigia a retirada de direitos dos meninos e meninas, a CPI do extermínio contra crianças e adolescentes provava exatamente o contrário do que defendiam os meios de comunicação: as crianças e adolescentes estavam sendo, exatamente, as principais vítimas da violência.

Essa grita fez com que um desses deputados populistas de direita, falso moralista, Benedito Rodrigues, apresentasse a PEC 171. Há um fato bastante curioso: este deputado foi pego na operação Caixa de Pandora, quando foi preso o ex-governador do DF José Roberto Arruda, em 2009. E o ex-deputado está solto até hoje.

Voltando à questão central, naquela ocasião, o que estava por trás era a resistência da burguesia em efetivar os direitos das crianças e dos adolescentes, filhos dos trabalhadores, já que os direitos humanos dos filhos da burguesia estão garantidos desde que ela chegou ao poder, no século 18.

Nesse momento, a redução da idade tem um sentido muito mais perverso, que faz parte da constituição de uma política do controle permanente dos filhos dos trabalhadores e, mais que isso, encarcera a juventude para explorar sua mão de obra, constituindo assim uma forma de funcionamento do Estado, o Estado Penal, que encarcera para explorar a mão de obra.

Não sabemos ainda quais são as consequências imediatas da redução, já que acordos ainda estão em andamento a respeito da forma de reduzir a maioridade. Existem no Congresso mais de 30 propostas de redução, a PEC 171 é só o guarda-chuva, as outras propostas vão sendo anexadas a ela e o Congresso vai fazendo as negociações para chegar ao formato final. O que podemos adiantar é que qualquer resultado será trágico para a adolescência brasileira.

Correio da Cidadania: O que pensa do projeto alternativo apresentado pelo senador Jose Serra (PSDB-SP) e já endossado pelo ministro da Justiça, Jose Eduardo Cardozo, no sentido de ampliar o tempo de internação em unidades de reabilitação de menores, mantendo a maioridade penal em 18 anos? O que resultaria dessa alternativa?

Givanildo Manoel: O PSDB sempre foi inimigo dos direitos das crianças e dos adolescentes, suas políticas foram uma tragédia, o maior exemplo é a FEBEM/Fundação Casa, que até hoje é uma das principais organizações violadoras. E, mesmo depois de tantas denúncias, continuam reiteradamente violando os direitos dos meninos e meninas. 

Não só na Fundação Casa, mas na própria criminalização, pois não podemos esquecer que foi Geraldo Alckmin quem implantou a política da tolerância zero, ocasionando a triplicação do número de encarcerados desde o início da sua gestão, além das mortes praticadas pela sua polícia, que tem como principal alvo a juventude. Portanto, o PSDB não tem nenhum compromisso em garantir a vida dos e das adolescentes.

Infelizmente, o PT tem feito política de "costas" para a classe trabalhadora. Nesse momento em que a sua política aplicada demonstrou ser um grande desastre, o PT vem ampliando uma política covarde para se manter no poder, ora fazendo todo tipo de concessão econômica à direita, ora fazendo concessão ao pior pensamento conservador, ora retirando direitos.

O PT sempre justifica para os seus militantes que suas decisões são baseadas no "mal menor", o que na prática tem demonstrado sempre ser um mal maior. E agora o PT tenta rifar a vida de mais de 21 milhões de adolescentes, em nome desse populismo reacionário, que exige sangue e nenhuma racionalidade de projeto humanizador da sociedade.

Isso faz com que o PT, mais uma vez, entre na "feira do rolo" do Congresso Nacional, oferecendo os direitos dos meninos e meninas para não ficar feio na foto final da bandalheira da retirada de direitos da classe trabalhadora que tem sido promovida pelo Congresso.

Correio da Cidadania: Como analisa esse tema em um ano marcado por avanço de diversas pautas conservadoras, desde a economia e a política, até o campo moral, religioso e social? Que intenções enxerga nos grupos políticos que se batem pela redução da maioridade?

Givanildo Manoel: Como falei na questão anterior, o que está por trás é a retirada de direitos, mas com o propósito claro de encarcerar mais jovens para explorar a mão de obra, pois este é um dos períodos mais produtivos e criativos entre todas as fases da vida. É também uma forma de efetivar aquilo que está previsto no Consenso de Washington, que nós da esquerda já debatemos muito no passado: trata-se da privatização das políticas sociais, mercantilizando-as e passando a tratá-las como serviço ou mercadoria.

Do ponto de vista religioso, os neopentecostais, que são os principais propositores dessa bizarrice social, de cristãos não têm absolutamente nada. Contrariam absolutamente tudo que Cristo pregava, atuam como seita para se afirmar, exploram a desinformação, o sentimento imediato e irracional.

Ao imaginar Cristo nos dias atuais, não sei se conseguiria chegar aos 33 anos e não tenho dúvidas de quem seriam os Herodes. Ou, se ainda conseguisse sobreviver e entrasse nos ricos templos atacando-os pela blasfêmia que estavam fazendo ao seu pai, certamente mandariam prendê-lo. Ou, ainda, se nesse momento Cristo se colocasse na frente dos adolescentes que terão seus direitos retirados e falasse “quem nunca pecou que atire a primeira pedra”, seria apedrejado até a morte por felicianos, cunhas, malafaias, entre outros.

Penso que esse setor evangélico é o pior deturpador dos ensinamentos de Cristo, portanto, não merece nenhum respeito por nenhuma pessoa que defenda um projeto de sociedade solidário, fraterno e justo.

Correio da Cidadania: Em sua visão, que outras políticas poderiam estar sendo debatidas em nossa sociedade quando o assunto é segurança pública? O que seria, a seu ver, efetivo para diminuir a criminalidade no Brasil, independentemente da faixa etária?

Givanildo Manoel: A primeira questão é que temos de ampliar a compreensão do que é segurança pública. Obviamente, não é a polícia, seja ela qual for. O que traz segurança para as pessoas, de forma geral, vai das coisas mais simples, como ter iluminação pública, e passa por políticas de educação, saúde, moradia, cultura, lazer, entre outras.

Em segundo lugar, a Constituição e o ECA estabeleceram que crianças e adolescentes são prioridades absolutas do país. Deveríamos, assim, estar pensando como isso deve ser efetivado na prática, o que nunca ocorreu. Mesmo sem provocar nenhuma revolução ou grandes mudanças, nada foi efetivado.

Do ponto de vista estrutural, temos sido enganados há muito tempo. Toda a conta econômica é paga pelo povo, pela classe trabalhadora, portanto, as políticas de juros, de corte de direitos sociais, de precarização do trabalho, de privatização das políticas sociais, todas elas, elevarão em muito a violência, principalmente por parte do Estado.

Se não dermos um cavalo de pau urgente e fizermos exatamente o contrário do que tem sido feito, dificilmente essa realidade se alterará e os capitães do mato estarão à espreita para defender os interesses dos seus senhores. E nós (classe trabalhadora), a juventude e adolescência, pagaremos o preço maior por essa irresponsabilidade dos governantes que gestam o capital.

Correio da Cidadania: O que pensa das posições que a mídia tem tomado, cujas matérias não raro têm pautado matérias narrando os crimes cometidos por menores de idade?

Givanildo Manoel: As posições da mídia são as posições de quem detém o poder, e têm lado, sempre tiveram. Existe há muito tempo uma deliberação das grandes redações de que a pauta deve aumentar quando tiver um adolescente envolvido em algum crime, provocando, assim, a sensação de que aumentou a violência dos adolescentes.

Não podemos esperar absolutamente nada da mídia de mercado, porque defende seus interesses, os interesses da sua classe. Como detêm instrumentos poderosos (TV, rádio, jornal, revistas, sites), sempre defenderão seus interesses, que não são os do povo, e tentarão nos fazer acreditar que falam a verdade. Lembremos de Joseph Goebbels, ideólogo da propaganda nazista: “uma mentira contada mil vezes se torna verdade”.

Correio da Cidadania: Como pensa que vai evoluir a atual polêmica em torno à maioridade penal nesse período de fortes retrocessos sociais e indicativo de severa recessão econômica? O que enxerga como o futuro, próximo e médio, da temática segurança pública no Brasil?

Givanildo Manoel: Na prática, a redução da idade já acontece: temos 70% do sistema prisional de jovens na faixa de 18 a 29 anos. Na verdade, a luta que tem sido feita é para derrubar ou não um marco simbólico, mas a criminalização e encarceramento já existem, violações já existem como nunca.

O que vai acontecer é a legitimação dessa barbárie, a partir de teorias que já verificamos, como o “direito penal do inimigo”, cuja origem é a Alemanha Nazista, e amplamente colocada em prática no Brasil. Basta ver quem são os criminalizados. São seletivamente escolhidos, ou seja, os indígenas, os negros e as negras.

O próximo período, com certeza, será de ampliação dessa lógica criminalizadora, controladora, encarceradora, de exploração e extermínio, que tem entre suas principais vítimas a juventude indígena e negra. (Com o Correio da Cidadania)

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