Carta à presidente Dilma

                                                                                   

"Senhora presidente,

Acompanho com interesse sua visita ao Grande Irmão do Norte. Percebo sua descontração quando se reúne com grandes empresários, uma contrapartida necessária ao permanente mau humor quando é forçada a fazer política e  prestar esclarecimentos ao povo brasileiro. Qualquer aprendiz de caixeiro-viajante sabe como é fundamental sorrir para potenciais clientes. Portanto, presidente, sorria para os que enxergam no Brasil terreno fértil para sugar mais-valia dos trabalhadores. Eles engordarão estatísticas e ajudarão a melhorar índices de popularidade. Quem sabe dão uma força para o Brasil conseguir uma vaguinha permanente no Conselho de Segurança da ONU ?

Agora, cá entre nós, não precisava exagerar nos rapapés. Encontrar-se com um dos maiores genocidas do século vinte e tratá-lo como “pessoa fantástica, com grande visão global” ? Declarar que teve “uma conversa inspiradora” com um dos assassinos mais sanguinários da História, o produtor eficiente de déspotas (entre os quais, aqueles que ordenaram a sua tortura e a de seus companheiros), com um político cínico e ardiloso ? Desculpe a franqueza, mas falar isso de Henry Kissinger equivale a elogiar o cabo Anselmo, o coronel Brilhante Ulstra, o delegado Sérgio Paranhos Fleury. A uni-los, laços de sangue inocente derramado.

Os de memória curta, e não acho que seja o seu caso, talvez não se lembrem de quem é esse velhinho nonagenário, com cara bonachona. Kissinger tem um prontuário de crimes que torna os piores mafiosos reles amadores. Em bem documentado livro (O julgamento de Kissinger, Editora Boitempo), Christopher Hitchens faz uma lista, provavelmente incompleta, das barbaridades do senhor K. Ele é culpado pelo seguinte:

* Morte de cerca de 600 mil civis no Camboja e 350 mil no Laos, resultado de bombardeios ordenados por ele, durante o governo Nixon.

* Morte de pelo menos 500 mil civis em Bangladesh. Kissinger levou os Estados Unidos a apoiarem e armarem o general Yahia Khan para o golpe de Estado de 1971.

* Planejamento e conspiração que levou à derrubada do governo de Salvador Allende, no Chile, em 1973. O general Pinochet, que assumiu o poder com total apoio da diplomacia norte-americana, liderou um dos regimes mais sangrentos e cruéis da América Latina. Durante uma reunião na Casa Branca, Kissinger disse que “não vejo por que temos que nos sentar para esperar, vendo como um país se torna comunista devido à irresponsabilidade de seu próprio povo”.

* Apoio ao general Suharto no genocídio de, pelo menos, 200 mil pessoas em Timor Leste, a partir de 1975.

* Planejamento do golpe militar que resultou na deposição, em 1974, do presidente eleito Mihail Makarios, em Chipre.

Esta, senhora presidente, é a “pessoa fantástica”. Ao ver a foto de vocês dois sorrindo e dando as mãos, fiquei triste. Ouvi os gritos dos chacinados nas catacumbas das ditaduras. Olhei, com horror, a sombra dos corpos destroçados por napalm e bombas de fragmentação. Senti a indignação dos povos com a arrogância imperial, que só trouxe miséria e desesperança. É essa imagem espectral que rondava seu aperto de mãos com o carniceiro de cabelos brancos. Lamento que a representante do meu país tenha que curvar a espinha a esse ponto, para não perder bons negócios.

Que faça uma boa e tranquila viagem de volta. De minha parte, lembrarei sua façanha em terras ianques: uma vítima da ditadura militar que afagou a mão de quem armou seus algozes.

Receba meu abraço inconformado.

Jacques Gruman" (*)


(*) Jacques Gruman é engenheiro, militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.

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