Apontamentos sobre cinema soviético: Eisenstein e a pedagogia de massas

                                     

Durante as primeiras décadas do século XX, a Rússia experimentou uma profunda transformação que deu lugar não só a um novo sistema sociopolítico e económico, mas também a um importante renascimento cultural que se manifestou em todas as artes, especialmente no cinema.

As produções cinematográficas pré-revolucionárias eram de escasso valor e dependiam em grande medida dos modelos do cinema francês. Só o experimentalismo que seguiu à Revolução de Outubro de 1917 colocou a recém-criada União Soviética à cabeça da vanguarda artística do cinema mundial na década de 20. 

A vida artística russa encheu-se de exposições, manifestos e declarações teóricas, ao tempo que se sucediam diversos movimentos vanguardistas, alguns derivados de influências externas e outros genuínos da nova Rússia revolucionária.

O cinema era concebido, nos termos da arte ao serviço da Revolução, como ferramenta artística e didática que devia desempenhar um papel importante no espalhamento da nova cultura revolucionária e na educação do grande público. Na altura, uma série de jovens cineastas soviéticos procedentes doutras artes (Kulechov, Vertov, Pudovkin ou o genial Eisenstein) trabalhava para construir uma teoria fílmica influenciada polos trabalhos do norte-americano David W. Griffith, de grande complexidade técnica, mas que superasse os princípios da sua narratividade produto da moral e estrutura social burguesa.

De facto, o filme de Griffith Intolerância, de grande importância para o cinema soviético, foi acompanhado na sua distribuição dum prólogo que permitia interpretá-lo em chave marxista. Assim nascia o 'cinema de massas', cujos princípios de narratividade foram expostos por Eisenstein nas suas reflexões sobre a cinematografia soviética como um meio com possibilidades e intenções pedagógicas.

Sergei M. Eisenstein (1898-1948) foi, sem dúvida, o mais destacado realizador e investigador do novo cinema da década de 20. Graças à sua particição no Primeiro Teatro de Trabalhadores do Prolekult (Organizaçom de Cultura e Educaçom Proletária), desenvolveu os princípios da teoria teatral denominada 'montagem de atrações', uma montagem dialética baseada no teatro utilitário de agitação, propaganda e divulgação de ideias. 

A atração, como elemento primário, é todo momento agressivo do espetáculo que submete o espectador a ações sensoriais e psicológicas para obter emoções capazes de guiá-lo a uma conclusão ideológica final. Com isto, Eisenstein propõe uma livre montagem de atrações arbitrariamente escolhidas, independentes, mas com uma orientação precisa para um determinado efeito temático final. 

Posteriormente, Eisenstein definiria a montagem no cinema como a sucessão de duas imagens das quais surgiria, por associação de ambas na imaginação do espectador, uma terceira imagem não equivalente à simples soma das duas primeiras. Mas a ordenação da sucessão das imagens nem era casual nem ficava ao livre arbítrio do público: era dirigida pelo autor ou realizador em base a uma união emocional e o intelectual previamente investigada.

Eisenstein sabia, pois, como tomar elementos isolados e dar-lhes um sentido diferente inserindo-os num processo de montagem dialética capaz de desenvolver uma ideia através do choque entre tiros independentes e mesmo opostos. Já no seu primeiro filme Greve (1924) se podem encontrar exemplos da narrativa resultante da montagem eisensteiniana, como a sequência em que as imagens da repressão czarista contra os operários se alternam com imagens de gado abatido no matadouro.


Outro bom exemplo é a conhecida cena da matança de Odessa do filme Potemkin (1925), cuja montagem cheia de matizes puramente simbólicos não só representa os factos, mas também provoca emoções bem dirigidas para uma conclusão ideológica final.

O papel participante do público

Com o objetivo de fornecer conhecimentos formais e técnicos e aprofundar nas possibilidades instrutivas do cinema, em 1925 foi criada na URSS uma espécie de Universidade do cinema onde os jovens eram formados como realizadores, operadores ou atores, e onde existiam laboratórios de investigação experimental para fazer ensaios. 

Além disso, as Universidades de Moscovo e Leningrado contavam com centros de estudos sobre a análise psicológica do espectador, enquanto algumas Sociedades de Amigos do Cinema mantinham contato com o público através da realização de pesquisas sobre as formas cinematográficas empregadas, a compreensão dos filmes, a resposta às suas expectativas ou a sua opinião sobre as produções.  Estes materiais eram posteriormente analisados e os resultados eram utilizados pelos produtores.

A planificação revelou-se logo determinante para este fim didático e revolucionário e estabeleceu-se um processo de retroalimentação composto de três elos: o público que dava a conhecer as suas necessidades e interesses, o texto narrativo planificado desde a produção e de novo o público como espectador que podia influenciar a criação de novos filmes. 

Assim, o público soviético deve ser entendido como participante e agente que guia o produtor com as suas opiniões e ajuda dalgum jeito a construir o texto prévio à realização do filme.  Esta rede de integração da indústria cinematográfica com o povo tem a ver com a ideia do predomínio do coletivo sobre o individual que deriva, como qualquer forma de arte, das novas formas sociais. De facto, a indústria cinematográfica, como qualquer outra indústria, estava sujeita a planos quinquenais que fixavam os temas primários e questões principais aos que os produtores deviam atender por causa do seu interesse social.

Mas Eisenstein foi mais além. Na sua preocupação pela participação popular na construção dos filmes, organizou debates coletivos sobre os cenários escolhidos, de forma que ouviu os interesses e opiniões de trabalhadores industriais ou camponeses que conheciam os ambientes e temas que iam ser tratados nas produções. 

Aliás, antes de serem expostos nos teatros, os filmes eram enviados a fábricas e aldeias para serem avaliados criticamente. A contribuição das massas estendia-se à realização quando participavam como atores. Este é o caso do filme Outubro (1927): na encenação do assalto ao Palácio de Inverno participaram mais de dous mil operários e os fuzilamentos nas ruas foram representados por voluntários, quase todos eles os próprios protagonistas dos factos reais em 1917.

Os referentes históricos constituíam, pois, a maior parte das produções da época, que tentavam reconstruir os fatos com a maior fidelidade possível, procurando os lugares exatos, os objetos reais e até os autênticos protagonistas dos acontecimentos passados. 

Os realizadores soviéticos atenderam a fatos do passado para educar o sujeito social na teoria revolucionária, elaborando muitos filmes históricos que integravam ficção e documentário. A integração de ficção e documentário implicava que ambos os níveis de representação fílmica se solapassem de maneira que a ficção se convertia em documento e o documento era narrativizado ficcionalmente para servir melhor à finalidade pedagógica e para provocar uma resposta emocional ligada a uma série de ideias que, como explicava Eisenstein, levasse o espectador "da imagem ao sentimento, do sentimento à tese".

Em síntese, o cinema soviético recusou a narratividade burguesa para optar por uma experimentação marcada pola dialética marxista e adotar assim uma concepção utilitarista e pedagógica do cinema a serviço da Revolução. (Com o Diário Liberdade-tradução e grifos meus, José Carlos Alexandre)

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