EDITORIAL

                                                                     

A volta às ruas


Silvio Caccia Bava

 Em discussões públicas feitas por vários grupos de esquerda para avaliar a conjuntura logo após as eleições começa a se consolidar uma compreensão de que o problema não são os outros, a direita, a mídia, ou o próprio governo que aparentemente vai por um caminho que conflita com seus compromissos eleitorais. O problema maior é a incapacidade da própria esquerda, ou das esquerdas melhor dizendo, de produzir análises e propostas que sejam capazes de disputar a hegemonia na sociedade e a orientação das políticas de governo.

Frente a um Congresso eleito que terá um perfil ainda mais conservador que o atual, e que será, portanto, pouco receptivo a propostas de mudanças como a reforma política ou a reforma tributária; frente a um sistema político capturado pelos interesses das grandes corporações; o que se anuncia é a crise das instituições democráticas, o aumento dos conflitos sociais, é a volta às ruas.

A defesa das politicas sociais, das politicas redistributivas, do aumento da renda das maiorias, faz parte de uma estratégia de desenvolvimento orientada para dinamizar o mercado interno. Tudo isso fica a depender da atuação da cidadania organizada. Só ela tem o poder de mudar a correlação de forças e garantir os direitos que estão ameaçados. Só ela pode sanear a endogamia instalada entre o poder político e o poder econômico e financeiro.1

O desafio da cidadania organizada é estimular o povo a romper com a dominação ideológica, que Étienne de La Boétie, já em 1548, identificava como a servidão voluntária: “O costume, que sobre nós exerce um poder considerável, tem uma grande força de nos ensinar a servir e a engolir tudo até que deixemos de sentir o amargor do veneno da servidão”.2 Trata-se, portanto, de trazer para o conjunto da sociedade análises e propostas que permitam que esta se reaproprie da política e do espaço público e dispute as decisões que orientam os destinos de todos.

Para que isso seja possível, é preciso construir instrumentos políticos coletivos, organizados na forma de frentes, coalizões e fóruns, que possam imprimir às manifestações de massa, quando estas ocorrerem, um sentido político transformador, de defesa de direitos e de alargamento da própria democracia.

Quando a cidadania organizada não encontra nos partidos políticos a vocalização de seus interesses, assistimos a manifestações como as de junho de 2013 no Brasil, que passam a ser disputadas, em sua orientação, pelas distintas forças políticas presentes na sociedade, inclusive forças de direita. É justamente nessas situações que as forças de esquerda precisam apresentar suas bandeiras, análises e propostas.

Para que isso aconteça, as esquerdas precisam mobilizar suas capacidades e seus conhecimentos, articulando dentro de uma arquitetura conjunta as ferramentas de “inteligência política” a serviço da democracia. 

Isso porque essa produção de conhecimentos tem sido apropriada pelo Estado e pelas empresas privadas, que têm seus próprios meios especializados de produzir informações estatísticas, estudos e pesquisas, avaliações e propostas. 

Se queremos que a democracia não seja reservada apenas àqueles que possuem os meios (em tempo, dinheiro, conhecimentos e relações), é essencial permitir a todos que exerçam na plenitude seus direitos cívicos.3

A história está cheia de exemplos de amplas mobilizações sociais que se politizam e influem nos destinos de um país. Foi assim recentemente na Costa Rica, contra o tratado de livre-comércio com os Estados Unidos; foi assim no Panamá, contra a ampliação do Canal; foi assim no Chile, contra a privatização do ensino público. 

Mesmo quando são práticas de resistência que não conseguem ser vitoriosas, elas vão construindo as capacidades para influir na política nacional, como é o caso dos movimentos sociais na Espanha contra as políticas de ajuste estrutural, os quais hoje se aglutinam num novo partido, o Podemos, “resultado de uma aprendizagem a partir do Sul que permitiu canalizar criativamente a indignação nas ruas de Espanha”.4

A caixa de Pandora aberta pelas manifestações de junho de 2013 é uma ampliação da democracia. É positivo e importante que todos os grupos sociais se expressem e disputem suas alternativas no espaço público, mesmo aqueles que são contra a democracia. 

O que é preocupante é que as esquerdas não reajam a todas as acusações e imputações que os setores conservadores tentam lhes atribuir e tampouco defendam o Brasil que queremos para nós e para as futuras gerações. 

O que precisamos é de uma ampla coalização de movimentos sociais e organizações da sociedade civil que venha a elaborar análises e propostas para a construção de um Brasil mais justo, mais igual, mais sustentável. E se disponha a enfrentar os mecanismos que garantem os privilégios das elites e a reprodução da desigualdade. Só assim os movimentos sociais que virão poderão abraçar bandeiras de transformação social, liberando sua indignação e construindo esperanças. 

(*) Silvio Caccia Bava  é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil

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