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                  Que liberdade de expressão é essa?

"O mundo ficou tão sério que o humor é uma profissão de risco." (Bernardo Erlich, artista/humorista gráfico argentino, 07/01/2015)

   
O único veículo de informação francês que volta e meia acesso - e às vezes leio com a ajuda do Google Tradutor, enquanto não me dedico a aprender o idioma de Montaigne - é o Le Monde. (Faz anos que não acesso o Le Figaro e o Le Monde Diplomatique, e o Libération só conhecia de ouvir falar.) Com isso quero dizer que nunca tinha ouvido falar no Charlie Hebdo, jornal que foi alvo de um atentado terrorista.

Doze pessoas foram mortas. Entre elas, o diretor do jornal e quatro cartunistas.

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O Charlie Hebdo, de acordo com as matérias que li e assisti, é um jornal semanal bastante conhecido pelas críticas políticas, sociais e religiosas que faz, muitas vezes recorrendo ao humor, à sátira. Por causa do ocorrido, tive contato com algumas das charges publicadas no jornal, reproduzidas à exaustão pela imprensa brasileira, e uma coisa é certa: os caras eram muito bons.

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Acompanhando o caso por um canal de notícias brasileiro, desconfiei de que alguns especialistas ouvidos tinham opiniões no mínimo questionáveis e recorri à internet para tentar me informar melhor. Em duas ou três leituras fiquei sabendo que este não foi o primeiro atentado ao Charlie. Em 2011 a sede do jornal foi incendiada. Não houve feridos na ocasião.

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A tragédia do Charlie tem origem em 2005, quando um jornal dinamarquês publicou charges satirizando Maomé - para o Islã, qualquer representação do profeta é considerada um pecado, mesmo que não haja intenção de ofender ou fazer humor. Isso desencadeou uma série de manifestações violentas - e na morte de 50 pessoas. Em 2006, como forma de protesto, o semanal francês reproduziu essas imagens, provocando mais uma vez a fúria dos fundamentalistas.

Segundo matéria da Folha de S. Paulo que detalha as polêmicas nas quais o jornal se envolveu nos últimos anos, Jacques Chirac, então presidente da França, fez críticas à reprodução das charges. Ele considerou o ato como uma "provocação que pode perigosamente exacerbar as paixões".

Chirac não foi a única autoridade francesa a criticar o Charlie. Em 2012, quando novas charges de Maomé foram publicadas no jornal, Laurent Fabius, desde então Ministro dos Negócios Estrangeiros, disse que fazer isso era como "jogar óleo no fogo". Houve críticas até mesmo por parte da imprensa francesa. O Le Figaro, por exemplo, considerou a atitude do Charlie uma "provocação estúpida".

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Muito se falou, a respeito do atentado, que ele não foi apenas contra os jornalistas, mas também contra a liberdade de expressão. Declarações que, apesar de protocolares, são sinceras e carregadas de consternação e indignação. Mas tais declarações e outras manifestações perdem um pouco de sua força quando sabemos que, no passado, não houve apoio, e sim críticas.

O problema não é expressar discordância, óbvio. Todos têm o direito de externar suas opiniões a respeito do que quer que seja. Mas, a meu ver, quando uma autoridade ou um veículo de informação condena o tom da crítica de um jornal ou jornalista sem acrescentar que o princípio da liberdade de expressão deve ser respeitado, abre-se um perigoso precedente. Os alvos da crítica percebem que não há um apoio irrestrito à liberdade de expressão. Ou seja: críticas podem ser feitas, mas alguns assuntos ou personalidades devem ser evitados, principalmente se o tom for mais ácido.

Que liberdade seria essa, então?

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Horas depois de abandonar a tevê e recorrer à internet tive a confirmação de que as duas fontes do canal, professores doutores, deram a entender que o Charlie Hebdo não deveria ter publicado as charges, pois eram provocações ao islamismo.

Fiquei estupefato. Nada pode justificar o extremismo. Nada.

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A última charge de Stéphane Charbonnier, editor-chefe - e também cartunista - do Charlie, dizia o seguinte: "Até agora, nenhum atentado na França. - Aguardem! Temos até o fim de janeiro para enviar nossas felicitações".

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