Socialismo e comunismo, modo de uso: manual didático ("Carta Maior")

                                                                           


Segundo matéria recente publicada no Globo, o capitalismo deu muito certo. Pelo menos para as 85 pessoas mais ricas do mundo ou cerca de 1% da população.

Rui Almeida


Ainda me surpreendo com gente que afirma repudiar os ideais comunistas ou socialistas porque eles “não deram certo” em parte alguma. Em resposta a essa afirmação o que me vem em mente é uma pergunta: Então o capitalismo deu certo?

Bom, parece que segundo matéria recente publicada no Globo, o capitalismo deu muito certo. Pelo menos para as 85 pessoas mais ricas do mundo ou cerca de 1% da população. Segundo a pesquisa citada, essa elite de 85 pessoas acumula a mesma riqueza que os 3,5 bilhões mais pobres do planeta. A matéria afirma ainda que cerca de 1% da população detém a metade da riqueza mundial. Sendo assim, minha pergunta também pode ser feita de outro modo: Se é que o capitalismo deu certo, deu certo pra quem?

Suspeito que, quando se supõe que o capitalismo tenha “dado certo”, se queira dizer que o capitalismo trinfou. Infelizmente, disso eu não tenho dúvidas. Se é eticamente permitido que ao dividirmos uma pizza gigante ao meio, metade dela seja fatiada para 85 pessoas e a outra metade seja fatiada para 3,5 bilhões de pessoas, então só podemos confirmar que o capitalismo triunfou. 

Ou seja, os melhores e maiores pedaços de pizza serão sempre para quem pode pagar por eles. E o mais cruel é que se você quiser um pedaço melhor de pizza, terá que disputa-lo competindo com os que, como você, têm acesso à segunda metade da pizza. 

Ou você acredita mesmo que poderá alcançar uma migalha que seja da primeira metade? Esqueceu? Estamos falando de capitalismo. Os tais 1% que desfrutam da primeira metade da pizza têm dinheiro suficiente para não deixar que você nem mesmo sinta o cheiro dela.

E melhor, eles têm poder suficiente para fazer você acreditar que essa história de comunismo ou socialismo são ideias retrógradas de gente do mal que não sabe respeitar o pedaço de pizza alheio. Ou seja, para protegerem seus pedaços de pizza eles precisam nos fazer acreditar que é ultrapassada a ideia de compartilharmos de maneira mais igualitária essa pizza gigante. 

Cada um tem o pedaço de pizza que lhe cabe e ponto. Se alguns têm um pedaço de pizza bem maior que do outro, e outros não têm nenhum pedaço de pizza, paciência! Ao invés de ficarmos fomentando essa coisa de socialismo ou comunismo, lendo Marx ou citando Badiou, tratemos de trabalhar com dedicação e persistência para conseguirmos nosso próprio pedação da pizza, fazendo assim que o capitalismo também dê certo para nós.

Sintetizando: Se o capitalismo não deu certo pra você é apenas por culpa sua. Porque se ele deu certo para alguns pode dar certo para você também, basta que você tenha fé e trabalhe.

No entanto, existe um grande problema com essa teoria do capitalismo, chamada de meritocracia, que é um problema matemático. Vamos supor que essa teoria funcione e que 99% da população mundial resolva, com fé e trabalho, conquistar o mesmo pedaço de pizza que o seleto grupos dos 1%. Matematicamente, para que isso seja possível, teríamos que aumentar essa pizza (inteira) pelo menos 99 vezes, só assim todos teriam a possibilidade de ter pedaços de pizza parecidos com as dos 1%, não é mesmo?

Entretanto, tal estratégia tem dois problemas graves. Primeiro: a pizza, por uma limitação ecológica, jamais poderá ser ampliada 99 vezes sem que entremos em colapso. Para se ter uma ideia, se todos os habitantes da terra consumissem como um americano médio (eu disse médio), nos seriam necessários quatro planetas Terra. Segundo: na medida em que a pizza cresce e as mesmas regras capitalistas são mantidas, o mais provável é que os pedaços extras de pizza fiquem para os que já têm pizza suficiente, afinal, eles são os mesmos que têm recursos de sobra para adquiri-los. Não é obvio?

Se você ainda não desistiu do texto e acompanhou meu raciocínio até aqui, já começou a entender o que move os ideais comunistas ou socialistas. Eles pensam em estratégias para que nossa pizza gigante seja dividida de forma mais equânime, para que não tenhamos distorções tão injustas como as que vemos.

Mas aí vem outra questão importante para socialistas e comunistas. Como faremos para que a riqueza que está acumulada nas mãos dos 1% mais ricos ou dos 85 (os mais ricos dentre os mais ricos), seja melhor distribuída, chegando especialmente, aos mais pobres e miseráveis? Antes de tentar responder esta pergunta, preciso abrir outro parágrafo.

Suspeito que o que chamei antes de triunfo do capitalismo, se deu por um motivo bastante simples. O capitalismo é um modelo econômico que repete o nosso modo mais primitivo de existência que é a chamada Lei da Selva, onde os mais fortes e mais aptos sobrevivem. Uma vez regidos pela Lei da Selva (daí o termo “capitalismo selvagem”) os mais frágeis, incapazes de vencer a luta pela sobrevivência, simplesmente não merecem viver, essa é a ordem natural das coisas.

Isso faz com que a sustentação ideológica mais forte do capitalismo seja sua naturalização. Digamos, então, que o socialismo e o comunismo vieram para subverter a ordem natural das coisas. Vieram para desnaturalizar a Lei da Selva e inventar uma nova ordem, a de que todos merecem ter uma chance de sobreviver, mesmo os mais frágeis. Pensando na nossa pizza gigante, a utopia socialista-comunista é que todos deveriam ter acesso a pedaços dignos de pizza, de forma mais igualitária possível e ninguém deveria poder esbanjar pizza, enquanto outros não recebem uma migalha sequer.

Voltando à nossa última pergunta: Quais as maneiras que socialistas e comunistas imaginam que sejam eficazes para redistribuir melhor essa pizza riqueza?

Socialismo e comunismo - modo de usar

Existem inúmeros teóricos e teorias que pensaram e pensam sobre o modo de uso do socialismo e do comunismo. Algumas teorias acreditam que um governo comprometido com os mais frágeis só surgirá por meio da chamada Revolução, onde os mais pobres (a maioria) se unem e tomam para si o poder e a responsabilidade de repartir a pizza-riqueza.

Em nome do bem comum, estatizarão a pizza, assim ela deixará de ser um bem privado, que beneficia uma minoria, para ser socializada em benefício da coletividade. Outras teorias defendem a presença do chamado Estado Forte, ou seja, um Estado que seja responsável por regular a economia, para que ela proteja os mais frágeis e redistribua de forma mais igualitária a riqueza circulante.

Algumas correntes acreditam que seja possível implantar os ideais comunistas e socialistas por meios de leis mais justas, serviços públicos de qualidade, programas sociais e de redistribuição de renda. E há ainda os que, em nome do comunismo ou socialismo, cometem equívocos e abusos, alguns deles absurdos e contraditórios.

Mas, vale lembrar, que isso não é uma particularidade do comunismo ou do socialismo. Todo tipo de atrocidade já foi cometida em nome das mais nobres causas. Guerras estúpidas são travadas em nome da democracia. Assistimos recentemente a violação da privacidade de pessoas e Nações, tudo feito em nome da paz. Ao longo da história, povos inteiros já foram escorraçados e dizimados em nome de Jeová, Jesus Cristo, de Alá... A lista de absurdos é vasta.

Apesar das várias correntes e nuances comunistas e socialistas, o que elas têm em comum é que todas buscam evitar que a Lei da Selva do capitalismo prevaleça sem intervenções, tal como desejaria o capitalismo liberal (liberado de qualquer intervenção do governo), ou sua forma mais moderna, o neoliberal. Por isso, a concepção de Estado Mínimo – um Estado que tenha o mínimo de influência na sociedade, especialmente na economia – é a que mais favorece que o capitalismo floresça em toda a sua plenitude, alcançando toda a crueldade e selvageria que lhe seja permitido.

Mas você pode agora estar se perguntando se poderíamos ter um capitalismo mais humanizado, menos competitivo e cruel. Citando Marx, o capitalismo se fundamenta na mais-valia e no exercito de reserva. Simplificando, é necessário que sempre haja pobres (o maior número possível a fim de baratear o preço da mão de obra) dispostos a trabalhar para sobreviver (exercito de reserva), para que a riqueza possa, então, ser deles extraída (mais-valia) e se acumule nas mãos de alguns poucos. Sendo assim, não há humanismo no capitalismo, é o homem sendo o lobo do homem.

Para quem perdeu as aulas de história, vale lembrar que socialismo e comunismo são irmãos gêmeos do capitalismo, nasceram juntos. De fato, o socialismo e o comunismo nasceram para questionar e problematizar as contradições impostas pelo capitalismo.

Em última análise, vieram para injetar humanismo no capitalismo. Por exemplo, sabemos que nas primeiras fábricas capitalistas os trabalhadores (homens, mulheres e até crianças) mantinham jornadas de até 16 horas diárias e sem direito a descanso semanal, férias e qualquer outra garantia trabalhista ou proteção social.

Sendo assim, todas as conquistas dos trabalhadores desde o início do capitalismo, foram alcançadas pelo jogo de forças que impediam – não sem muita luta – que a ordem natural do capitalismo seguisse seu fluxo. Foram os ideais comunistas e socialistas que sempre fizeram, e sempre farão, contraponto ao desejo capitalista de acumular mais e mais à custa da exploração de outro ser humano e da miséria de muitos outros.

Socialismo e Comunismo fracassaram?

Lanço agora uma outra pergunta: Se acreditamos que o capitalismo triunfou em certa medida, isso quer dizer que socialismo e comunismo fracassaram ou sucumbiram? Na minha opinião, não, e vou explicar. Marx concebia o comunismo como movimento que reage aos antagonismos do capitalismo e não como um modelo de sociedade ideal.

Sendo assim, enquanto o capitalismo existir, com suas contradições e desigualdades, a “hipótese comunista”, como diz Alain Badiou, permanecerá viva. Badiou afirma ainda: “Se essa hipótese tiver de ser abandonada, então não vale mais a pena fazer nada na ordem da ação coletiva. (...) Cada indivíduo pode cuidar de sua vida e não se fala mais nisso”.

Um dado curioso é que os defensores do Estado Mínimo, em geral adeptos do capitalismo, criticam os governos socialistas e comunistas por nutrirem um Estado Forte que intervém constantemente na economia, na política e nas corporações.

Todavia, quando em 2009 a economia americana entra em colapso (mais uma vez), é nas portas desse mesmo Estado que os banqueiros americanos vêm bater pedindo socorro. O que quer dizer mais ou menos o seguinte: “Nós, que fazemos parte da elite dos 1% que detém a metade pizza estamos tendo problemas em administrar nossa metade e estamos temerosos em perde-la por completo, sendo assim, precisamos da ajuda do governo para que possam usar da sua parte da pizza, a que serve para socorrer os que tem pouca pizza ou pizza alguma, para nos reerguermos". É quando os ideais comunistas e socialistas servem, desta vez, para socializar o prejuízo, já que o lucro é sempre privatizado.

Socialismo e comunismo abrigam uma sociedade ideal?

Já ficou claro que capitalismo, comunismo ou socialismo são modos de organização econômica, são maneiras diferentes de pensar a divisão da pizza, sendo que, todos eles podem florescer em diferentes formas de governos, mais ou menos democráticos, mais ou menos corruptos, mais ou menos agressivos, mais ou menos estúpidos, mais ou menos sanguinários e mais ou menos paranoicos. Não existe um ideal de sociedade. Capitalismo, socialismo e comunismo podem abrigar virtudes e mazelas.

Por outro lado, sempre haverá uma tensão intransponível entre o individual e o coletivo, entre o privado e o público, entre o singular e o universal. Freud afirmava que a civilização só foi possível porque o ser humano foi capaz de abrir mão da satisfação de suas pulsões egoístas em nome da coletividade.

Todavia, sabemos que essa renuncia não se dá sem angústias e tensões. Digamos então que os ideais socialistas e comunistas nos auxiliam a pensar o mundo para além do nosso próprio umbigo. Investem na constante construção de um mundo onde os interesses individuais precisam ser considerados, entretanto jamais poderão ser maiores ou mais importantes que os interesses da coletividade.

Eu não acredito numa sociedade ideal, num sistema de governo ideal, num sistema econômico ideal. No entanto, eu não posso viver num mundo onde 85 pessoas tenham mais importância do que 3, 5 bilhões, sobretudo se eu sei que esses últimos não vivem, apenas sobrevivem, quando sobrevivem.

E é por isso, que eu me recuso terminantemente a abandonar os ideais socialistas e comunistas, pois são essas bandeiras que me permitem ter esperança. Se eu não puder ao menos me envergonhar e me indignar por tanta injustiça e desigualdade e acreditar que temos rotas de fuga possíveis em direção a um outro mundo, duvido que conseguisse levantar da cama todos os dias pela manhã. (Com Carta Maior)

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