CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA

                                                                      

                           Lei que deveria punir discriminação é, ela própria, discriminatória

Walter Claudius Rothenburg e Luiz Carlos dos Santos Gonçalves

Pessoas são assassinadas no Brasil ou sofrem violência somente porque são ou parecem ser homossexuais ou transexuais. O direito de cada um livremente escolher ou exercer suas formas de amar é cotidianamente desrespeitado nos espaços públicos e privados.

No interior de São Paulo, pai e filho que estavam abraçados foram espancados na suposição de que se tratava de um “casal”. Profissionais são preteridos por sua homoafetividade e, por esse motivo, imóveis deixam de ser alugados a alguém. 

A ocultação da verdadeira identidade é um ônus que muitos são obrigados a suportar em razão da intolerância de tantos. Esses dados da realidade não são questionados pelos críticos do polêmico parecer dado pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, no Mandado de Injunção 4.733.

A discriminação em escala máxima é um dos mais profundos problemas que o Estado Democrático de Direito precisa resolver e desdiz o objetivo fundamental de nossa República, que é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de qualquer espécie.

A legislação que deveria proibir e punir todas as formas de discriminação é, ela própria, discriminatória. Fala em “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, como se a menção da Constituição no artigo 3º, IV, não trouxesse a norma de extensão: “e quaisquer outras formas de discriminação”. 

A Lei 7.716/1989 não menciona homofobia ou transfobia: faz pensar que uns preconceitos são melhores que outros e que, para eles, ao invés das penas da lei, têm-se as omissões da lei. Essa lei deu uma hierarquia ao preconceito e descumpre uma clara ordem constitucional de criminalização da discriminação odiosa.

Não existe norma específica no Brasil para punir a homofobia e a transfobia, apesar de diversas propostas nesse sentido, como o Projeto de Lei 122/2006 do Senado — que tramita há treze anos! O texto original do Projeto de Lei 236/2012 (novo Código Penal) incluía essa forma de discriminação e agravava a sanção, mas foi alterado e suprimiu-se tal proteção.[1] A mora inconstitucional do Poder Legislativo mostra-se conformada e confortável, como se vivêssemos numa sociedade alheia ao sofrimento — que é dos outros, dos desiguais, dos que são ou escolheram ser assim.

É possível extrair da Constituição o dever de proteger criminalmente os graves atentados por motivo de discriminação sexual? A proteção criminal é a mais adequada social e juridicamente? O que se pode fazer se e enquanto não é aprovada uma lei?

A Constituição informa todos os ramos do Direito, que haverão de concretizá-la. Um Estado Democrático de Direito firmemente comprometido com a liberdade tem de elaborar um sistema penal restrito às ofensas mais sérias e, ao mesmo tempo, eficiente ao proteger os valores mais importantes. 

Assim, quando a Constituição prevê mandamentos expressos de criminalização para o racismo e a tortura, por exemplo, e quando ela assegura a inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, essa Constituição determina — mais do que autoriza — a intervenção do Direito Penal.

Não é preciso refutar as teses do Direito Penal garantista para concordar com isso: sim, é possível extrair da Constituição brasileira um mandamento de criminalização da homofobia e da transfobia.

No breve parecer anterior do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, contrário ao Mandado de Injunção 4.733, um dos argumentos foi de que o ordenamento jurídico brasileiro já pune suficientemente os assassinatos e agressões contra homossexuais e transexuais com os crimes comuns de homicídio e lesões corporais.

Embora bem-intencionada e reconhecedora do merecimento de tutela penal, essa manifestação não foi bem recebida pelos interessados na proteção dos direitos à diversidade sexual, pois não considerou a discriminação específica contida nos atos homofóbicos de ódio e violência. No extremo, então, também não haveria por que criminalizar o racismo, a violência contra a mulher, contra a liberdade religiosa...

A criminalização da homofobia e da transfobia é a grande bandeira atual dos movimentos em prol da identidade sexual, reivindicada no âmbito político e legislativo, dos meios de comunicação social e também no judicial. Assim, quando a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) opta por acionar o Supremo Tribunal Federal por meio de um mandado de injunção, não é ilegítima quer a estratégia, quer a via eleita. 

Pode ser que a melhor maneira de discutir a questão e chegar a um resultado efetivo seja uma mudança nas mentalidades ou, em menos tempo, a aprovação de uma lei, mas não devemos negar que nosso quadro democrático e jurídico oferece também a oportunidade de discutir judicialmente a questão. 

Diante da dificuldade em mudar a cultura ou aprovar a lei, a reivindicação judicial pode oferecer um estímulo e uma contribuição a ambos, como o demonstra o reconhecimento das uniões homoafetivas por meio da ADI 4.277/DF. Explica-se assim uma das intenções da expressão “diálogo institucional entre poderes”, utilizada no novo parecer do PGR.

Se a Constituição comanda uma proteção eficiente em favor da dignidade e contra a discriminação, qual seria o limite da discricionariedade legislativa em um Estado Democrático de Direito? Será que não existe uma alternativa constitucional para a insuportável omissão do legislador? Qual o papel das funções essenciais à Justiça? Em que medida seria tolerável o ativismo judicial? 

Trata-se de um dos problemas mais tormentosos do constitucionalismo contemporâneo, apimentado pelo caráter moralmente controverso da questão da identidade sexual. Teria sido mais cômodo ao procurador-geral da República simplesmente reportar-se à manifestação anterior e sepultar uma discussão judicial que talvez não tivesse maiores perspectivas.

A opção pela interposição de um mandado de injunção estava posta pela ABGLT. Era o caso, então, de avaliar as possibilidades desse instrumento processual a partir da jurisprudência que o STF está a construir e que oscila desde uma mensagem ao Congresso Nacional para que edite a norma faltante (como um “apelo ao legislador”) até a elaboração de norma específica, ainda que adaptada de material legislativo já existente (como dão exemplo a questão da greve no serviço público — MI 670/ES, 708/DF e 712/PA — e da aposentadoria de servidores públicos que tenham exercido atividades sob condições especiais — MI 795/DF). 

Sem descurar das particularidades constitucionais dos dispositivos penais (que regem, afinal, a relação entre liberdade e sociedade), há normas, como a do artigo 10 da Lei 9.882/99, que permitem ao Judiciário decisão vinculante sobre “as condições e o modo de interpretação e aplicação” de preceitos fundamentais. O direito de não ser discriminado figura entre tais preceitos e não parece haver razão para que a lei penal se coloque à margem deste campo da jurisdição constitucional.

O controle da omissão inconstitucional suscita uma reconfiguração da independência, mas igualmente da harmonia que deve reger as relações entre os Poderes, conforme preconiza o artigo 2º da Constituição. Busca-se uma legalidade, porém configurada excepcionalmente com a participação do Supremo Tribunal Federal na qualidade de árbitro constitucional. 

A proposição do Mandado de Injunção 4.733 e o parecer que opina por sua procedência exemplificam uma maneira legítima, criativa e prática de buscar o atendimento da legalidade criminal estrita, jamais de renegá-la ou amainar as exigências da tipicidade penal.

A proibição de proteção insuficiente, como aporte teórico para a determinação constitucional de criminalizar a homofobia e transfobia, aponta para a possibilidade extrema de controle judicial da liberdade de conformação legislativa no campo penal. 

Não é possível esperar dos deveres de proteção dos direitos fundamentais apenas uma postura passiva ou de invalidação de revogações legislativas. Foi de fato o que aconteceu no caso Aborto I, do Tribunal Constitucional Federal alemão, no qual a lei que descriminalizava todas as formas de aborto foi declarada inconstitucional, voltando-se ao sistema das exceções razoáveis à sua criminalização. 

Disso não decorre, porém, que esse modelo seja estático e infenso às necessidades cambiantes de proteção de direitos. Criminalizações e descriminalizações devem ser feitas com a função de se obter um Direito Penal constitucionalmente adequado, proporcional. Numa Constituição que desconfia democraticamente do legislador a ponto de criar, expressamente, deveres de criminalização e que, ao mesmo tempo, trouxe ao menos dois mecanismos de controle judicial da omissão, as soluções não podem quedar-se esquemáticas, não enquanto o preconceito campeia.

No âmbito internacional, existem orientações para a proteção criminal, como uma Resolução do Parlamento Europeu sobre a homofobia na Europa, de 2006, cujo item 9 “exorta urgentemente a Comissão a considerar o recurso a sanções penais em caso de violação das diretivas” que versam sobre o combate a toda discriminação, inclusive sexual.

Eminentes constitucionalistas publicaram, neste ConJur, no último dia 21, artigo de elevada crítica a respeito do parecer do Procurador-Geral da República.[2] São luminares do constitucionalismo emancipatório e cada um deles poderia, por sua competência, ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal. 

A crítica que eles e outros fazem merece reflexão atenta, por apontar riscos advindos de um ativismo judicial que não pode romper as peias de garantias constitucionais como a reserva de lei penal. Textualmente dizemos, sem desvio retórico, que não cogitamos de subverter dogmas e defender uma “analogia in malan parten” em Direito Penal. 

Não se trata simplesmente de aplicar uma norma incriminadora a outra hipótese não prevista, mas de elaborar uma norma para a situação desprotegida, a partir de uma intervenção judicial excepcional, controlada e constitucionalmente viável, que force a atuação do legislador. Assim, o foco do parecer do PGR é a afirmação dos direitos fundamentais, a reprovação da omissão inconstitucional e a ampliação dos efeitos do mandado de injunção.

Para o exercício da liberdade é preciso não ter medo. Requer-se o respeito pelas pessoas como elas são, qualquer que seja sua identidade sexual. A proteção criminal contra a discriminação sexual violenta contribui decisivamente para o livre desenvolvimento da personalidade e representa um papel legítimo que o Direito Penal tem a cumprir. A discussão a respeito das possibilidades jurídicas de se obter essa proteção é fundamental na construção de uma resposta adequada. 

Além do Mandado de Injunção 4.733, tramita no STF, sobre o mesmo tema, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26/DF, que também reclama um pronunciamento das autoridades implicadas. A manifestação do procurador-geral da República na questão tal como posta pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais é arrojada, mas consciente, atenta às expectativas da sociedade brasileira e rigorosamente comprometida com a ordem constitucional.

Não é o propositivo parecer do PGR que enfraquece a defesa do Estado Democrático de Direito, mas a violência impune e a desproteção a direitos fundamentais gerada pela ausência de criminalização desta forma odiosa de preconceito.

[1]              “Substitutivo do Código Penal abandona proteção à opção sexual” - Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, www.conjur.com.br, 8 de fevereiro de 2014.

[2]              “Perigo da criminalização judicial e quebra do Estado Democrático de Direito”; Clèmerson Merlin Clève, Ingo Wolfgang Sarlet, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Lenio Luiz Streck e Flávio Pansieri.

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Walter Claudius Rothenburg é procurador regional da República, mestre e doutor pela UFPR e pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II.

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves é procurador regional da República. Mestre e Doutor pela PUC-SP. Foi relator geral da Comissão de Juristas que elaborou anteprojeto de Novo Código Penal.

Revista Consultor Jurídico, 29 de agosto de 2014, 12:57

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