Para quem gosta de polêmica...(à parte a tese do historiador, lembre-se que foi no governo Geisel que pegavam comunistas na calada da noite, sumindo com eles, torturando, matando, levando-os à tortura também psicológica. Há exemplos aqui em BH...E um dos casos mais emblemáticos, o desaparecimento do dirigente camponês e membro do Comitê Central do PCB Nestor Veras, sequestrado quando se encontrava na avenida Olegário Maciel, esquina com a rua Tupinambás)

                                                                       


O homem que encurtou a Ditadura brasileira *


Mário Maestri **


Entre a ampla bibliografia lançada para os cinquenta anos do golpe militar, o breve ensaio Ditadura e democracia no Brasil [Rio de Janeiro: Zahar, 2014], do historiador Daniel Aarão Reis, destaca-se pela defesa de tese e de proposta surpreendentes, para não dizer mais.

Vejamos a tese: literalmente sem enrubescer, o autor encurta a ditadura em seis anos. Para ele, ao contrário do tradicionalmente proposto, a ordem militar durou apenas 15 anos, e não 21. Ela teria chegado ao fim durante o governo Ernesto Geisel.

A revelação de Daniel Aarão Reis não é menos paradoxal. Ele retoma com enorme ênfase a proposta já um tanto velha que a ditadura não foi regime meramente militar! Com outros historiadores, em suas pesquisas, teria descoberto que a ordem militar foi apoiada também por civis, conhecendo, sempre, apoio entre a população não-fardada! 

Portanto, mais correto seria denominá-la de ditadura cívico-militar, como se tem proposto. Entre outras comprovações dessa importante descoberta estariam a “Marcha por Deus, pela Pátria e pela Família” e os índices eleitorais da ARENA durante aqueles anos!

Para Daniel Aarão Reis, a ditadura interrompeu-se durante o governo Ernesto Geisel, quando o ditador devolveu à sociedade alguns preceitos constitucionais. Os anos finais de seu governo e toda a presidência do “homem que amava os cavalos” seriam período pós-ditatorial, de “transição democrática”. Essa última teria se iniciado “com a revogação das leis de exceção [...] em 1979” e terminado “com a aprovação” da Constituição de 1988. [p.125]

 A Ditadura Encurtada

Envolvido em seu formalismo institucional, o autor vacila na própria qualificação de parte do governo Castelo Branco como ditadura nua e crua.
 “Em seus últimos meses de governo, Castelo Branco efetuou ações estratégicas no sentido de institucionalizar a ditadura, dotando-a de um direito autoritário que pudesse, porém, prescindir do recurso continuado a atos de exceção.” (A materialização desse projeto)“significava, objetivamente, a superação do estado de exceção, ou seja, da ditadura.” [p.64]

 Procederiam, portanto, as propostas dos apologistas de Castelo Branco como um general de foro constitucionalista, ainda que conservador. O certo é que, em 24 de janeiro de 1967, no final do governo castelista, era promulgada Constituição que, segundo Daniel Aarão Reis, punha fim à ordem ditatorial substituindo-a por “estado de direito autoritário”. [66] Portanto, parte daquele governo e da administração de Costa e Silva, até o AI 5, seriam governos constitucionais, regidos por preceitos constitucionais, ainda que imperfeitos.

Ditadura, mesmo, dura e crua, seria a conhecida de 13 de dezembro de 1968, com o AI 5, até a magnanimidade de Ernesto Geisel.  Segundo o autor, a restauração da “ditadura aberta” teria sido feita a partir de movimento defensivo do alto mando militar, inquieto, devido a uma conjuntura social e política que “podia eventualmente se condensar e oferecer perigo real de desestabilização da ordem [...]”. Como veremos, ele propõe que o próprio golpe foi iniciativa defensiva do alto comando militar de perigo real ou imaginado. [p.71]

Portanto, não deveremos estranhar caso Daniel Aarão Reis revele, proximamente, que o país conheceu apenas dez anos de ditadura militar [desculpem-me, cívico-militar], ao contrário dos 15 que atualmente propõe. Maldade, mesmo, apenas desde o AI 5, em fins de 1968, até a efetivação do “pacote de medidas liberalizantes” [sic] de setembro de 1978, de Ernesto Geisel. 

Para o autor, em inícios de 1979, com a obsolescência dos atos institucionais, “revogava-se o estado de exceção, ou seja, a ditadura”. [pp.116, 123].  E pensar que desconhecíamos, naquele então, que não vivíamos mais sob uma ordem ditatorial!

Formalismo Institucional

Em processo explícito de substituição da essência dos fenômenos por sua aparência, Daniel Aarão Reis vê a democracia que decresce ou que cresce onde recua ou avança o respeito formal a normas institucionais. Como nos casos de Castelo Branco/Costa e Silva e Ernesto Geisel/João Figueiredo. Vê o fim da ditadura e início da transição democrática na restauração formal de normas legais, respeitadas ou desrespeitadas ao bel prazer pelo alto comando militar.

Devido ao seu formalismo, como não houve modificação constitucional essencial nos anos Geisel-Figueiredo-Sarney, o autor define todo o período como de “transição democrática”. A ruptura de qualidade não teria se dado na entrega do poder pelo último ditador [ditador, não! Presidente ou quase], mas apenas quando da Constituição de 1988.  Geisel e Figueiredo seriam, portanto, quase presidentes e Sarney, o primeiro presidente após 1985, um meio-ditador!

Não é difícil compreender porque há consenso historiográfico em torno do fim da ditadura em 1985, quando da assunção de José Sarney, vice-presidente na chapa oposicionista de amplo consenso. E não apenas quando da plena vigência da Constituição de 1988, que formatou constitucionalmente a nova forma do exercício dos poderes republicanos que emergiram da ordem militar.

Do Poder Militar ao Civil

Em 15 de março de 1985, mesmo nos marcos da Constituição ditatorial apenas retocada, com a diplomação de José Sarney, as rédeas do hipertrofiado poder presidencial passaram totalmente para as mãos de um civil, representante do amplo bloco político-social oposicionista, sob a hegemonia dos segmentos democrático-burgueses e conservadores.

De 1964 a 1985, o poder de mando sobre a sociedade fora exercido em forma monopólica pelo alto mando militar, através dos poderes executivo, judiciário, legislativo e da coerção direta. Fossem quais fossem as concessões institucionais formais, elas eram ou podiam ser violadas explícita e implicitamente, segundo a vontade do poder ditatorial. Realidade que se manteve até o último dia do governo de João Figueiredo.

A partir da presidência de José Sarney, o feixe de poderes escapou totalmente das mãos da alta oficialidade. Agora, para ela intervir na sociedade, necessitava apoderar-se do poder através de novo golpe e de nova deposição do poder civil. Em verdade, desde então, o alto comando perdeu espaço de gerência da própria instituição militar. Por exemplo, já não mais determinava o orçamento das forças armadas. 

* Resenha do livro de Daniel Aarão Reis   Ditadura e democracia no Brasil. Do golpe de 1964 à Constituição de 1988, Zahar, 2014.
** Historiador, ensaista e professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS; colaborador e membro do conselho consultivo de marxismo21.

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