O clorofórmio (ou parodiando Marx: o futebol é o ópio do povo)

                                                   

O clorofórmio

Correia da Fonseca


Serão após serão, quando não também ao longo do dia, os canais ditos informativos da televisão portuguesa derramam em nossas casas, numa ocupação quase total da atenção e do interesse dos telespectadores, horas e horas de debates entre especialistas em futebol, entrevistas, polémicas, algumas intrigas. Um zumbido anestesiante.


Foi em Março de 45, ainda a guerra devastava a Europa e o mundo embora já não pudesse haver dúvidas quanto à próxima derrota do nazi-fascismo, para grande desconforto e inquietação dos seus cúmplices em Portugal e não só. No Estádio Nacional, inaugurado poucos anos antes, ia realizar-se um jogo de futebol entre as selecções de Portugal e da Espanha.

Um dia destes, examinando papéis antigos mas interessantes que um camarada tem vindo a preservar, passou-me pelas mãos um modesto desdobrável que então foi distribuído aparentemente para promover o interesse do público pelo acontecimento. 

Nele encontrei, naturalmente, os nomes dos jogadores que integravam a equipa portuguesa, todos ou quase todos recordados hoje como figuras quase lendárias na história da modalidade em Portugal: Amaro, Azevedo, Peyroteo, Espírito Santo, outros.

Mas o que naquele papel me surgiu como mais significativo e lhe conferia o valor de verdadeiro documento era o título que o encimava em caracteres bem destacados: «O que nós queremos é futebol!». 

Recordada hoje, a frase até parece uma tirada irónica e voluntariamente denunciadora de uma estratégia de manipulação de espíritos, mas o facto é que estava ali como uma séria afirmação, quase orgulhosa, de escolha de um caminho: propunha-se injectar no espírito das gentes a «certeza» de que os portugueses não se interessavam pelos trágicos acontecimentos que ocorriam noutros lugares nem sequer pela «política», essa espécie de bicho repugnante que o salazarismo expulsara da vida portuguesa, apenas tendo olhos e coração para o espectáculo futebolístico e as esperadas proezas dos jogadores portugueses.

Então ainda não havia televisão, bem se sabe, mas a rádio encarregava-se de levar esse interesse apaixonado aos quatro cantos do País. Era porventura o mais óbvio e eficaz elemento de «o clorofórmio a domicílio» de que Mário Dionísio falava num belo poema de «O Riso Dissonante». 

Horas e horas 

Hoje, o futebol não precisa de toscos panfletos desdobráveis para se infiltrar nas apetências e nos interesses dos portugueses. Nem mesmo a rádio se mantém na vanguarda dessa peculiar espécie de mobilização psicológica, de fixação das atenções em tendencial regime de monopólio: está aí a TV para cumprir essa função com uma incomparável eficácia e, acrescente-se, com uma quase surpreendente desvergonha.

Serão após serão, quando não também ao longo do dia, os canais ditos informativos da televisão portuguesa derramam em nossas casas, para suposto proveito dos nossos olhos e ouvidos, para ocupação quase total da atenção e do interesse dos telespectadores, horas e horas de debates entre especialistas em futebol, entrevistas, polémicas, algumas intrigas. 

É uma estratégia de informação televisiva que de facto sugere que «o que nós queremos é futebol», isto é, que prossegue a operação de convencimento que o fascismo tentara praticar em 45 com débil meio. Que tende a convencer-nos disso. É a versão aperfeiçoada do «clorofórmio a domicílio» de que falou o poeta.

Este artigo foi publicado no “Avante! Nº 2111, 15.05.2014 (Com odiario.info)

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