Análise pericial feita pela CNV aponta que lesões em militantes da ALN eram incompatíveis com versão da ditadura

                                         

Análise pericial dos laudos e documentos produzidos por peritos da Comissão Nacional da Verdade sobre as mortes de Iuri Xavier Pereira e Alex de Paula Xavier Pereira apontam que lesões a tiros no corpo dos dois militantes, integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), e mortos pela repressão em São Paulo, eram incompatíveis com as lesões que teriam pessoas mortas em tiroteio com a polícia, que foi a versão apresentada pela ditadura para as cinco mortes relatadas ontem (24/02) em audiência pública conjunta realizada pela CNV em parceria com a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" sobre as mortes de oito militantes da ALN em São Paulo.

A análise foi apresentada ontem de manhã (24/02), primeiro dos dois dias de audiência, pelos peritos Mauro Yared e Pedro Cunha, da Comissão Nacional da Verdade, onde desenvolvem análises de laudos produzidos pela ditadura militar por meio de novas tecnologias de perícia criminal.

Nos casos de Iuri e Alex, os peritos trabalharam analisando os laudos produzidos pelo médico legista Isaac Abramovitch, em 1972, e os laudos encomendados pela família das vítimas, nos anos 90.

Pelo exame dos laudos foram constatadas em ambas as vítimas lesões não apontadas na perícia feita por Abramovitch. Os corpos de Iuri Xavier Pereira e Gelson Reicher, mortos em janeiro de 1972, segundo a versão da ditadura, ao resistirem à prisão, tinham, por exemplo, escoriações no rosto e no tórax ignoradas pelo legista do IML de São Paulo, já falecido. Essas lesões contusas, afirmam os peritos, não poderiam ter sido provocadas por acidente de carro, por exemplo.

Já o corpo de Iuri, morto num suposto tiroteio com a polícia, juntamente com Ana Maria Nacinovic Correa e Marcos Nonato da Fonseca, no restaurante Varella, na Mooca, em junho de 1972, possuía uma ferida típica de execução na nuca não descrita no laudo necroscópico.

Nos casos de Ana, Marcos e Gelson, apesar de não terem tido acesso ao laudo de exumação e outros documentos, os peritos da CNV puderam constatar, comparando as imagens dos corpos dos três com as fotos dos exames necroscópicos de Iuri e Alex, que as vítimas também tinham lesões características de execução.

Segundo Pedro Cunha, os peritos da CNV analisaram, em sua atividade profissional, vários laudos do médico legista que atuava na equipe do IML de São Paulo. "Não é a primeira omissão em laudos relatados pelo Abramovitch que nós encontramos e é característica dele não relatar o que precisa ser caracterizado", afirmou.

PERUS – À tarde prestou depoimento o ex-administrador do cemitério de Perus, Antonio Pires Eustáquio. Ele contou em seu depoimento como descobriu a vala comum do cemitério de Perus(foto), ainda nos anos 80, e como ele ajudou familiares de mortos e desaparecidos a localizarem os restos mortais de seus familiares nesta e em outras áreas do cemitério.

Eustáquio também contou que antes da criação da vala comum, em 1976, pouco antes de ser transferido para o cemitério de Perus, o plano do serviço funerário era exumar e cremar os restos mortais dos indigentes, o que teria levado a destruição dos restos mortais de vários militantes políticos. O plano, entretanto, não foi levado adiante devido questões legais e a ideia foi abandonada, sendo substituída pela criação da vala comum, com o registro em livro das exumações e novos enterros naquele local.

Ele também confirmou que as guias de sepultamento dos militantes de oposição assassinados pela ditadura eram marcadas com um "T" vermelho de terrorista. "Havia uma via branca, com a declaração de óbito, com os dados mínimos. Notei de imediato que algumas delas eram marcadas com uma letra 'T' em vermelho, que seria de 'terrorista', o que só entendi depois, participando de reuniões com familiares. Era uma distinção, que ficava em cima, no canto superior", contou.

Segundo Eustáquio, numa reunião, no final do governo militar, foi dada uma ordem para que ele não mexesse com a vala de Perus e que não mostrasse ou entregasse as guias de sepultamento diretamente aos familiares. Nessa época, para ajudar os parentes de desaparecidos, conta, ele visitava o cemitério à noite para pesquisar nos livros de registros. "Só na gestão da prefeita Erundina, em 1990, foi concedida a abertura da vala às famílias", contou.

"Quando comecei em Perus mandaram que eu desse uma atenção muito especial aos indigentes. Tanto dei que eu pude ajudar muito aos familiares dos desaparecidos e eu tenho muito orgulho disso", afirmou o ex-administrador do cemitério.
                                                             
TESTEMUNHA – Na manhã de ontem (24/02), a CNV e a Comissão Estadual da Verdade também ouviram a testemunha Francisco Carlos de Andrade, ex-integrante da ALN. Ele viu os corpos das cinco vítimas cujos casos foram contados na audiência de ontem: Alex Xavier, Gelson, Iuri, Ana e Marcos.

Preso no Doi-Codi em novembro de 1971, Andrade estava com os policiais no Detran onde lhe eram mostradas carteiras de motorista com a finalidade de tentar identificar um militante oposicionista, momento em que os policiais receberam o chamado sobre as mortes de Alex e Gelson e o levaram até o local para que reconhecesse os corpos. Era janeiro de 1972.

Meses depois, em junho de 1972, os corpos de Iuri, Ana e Marcos foram exibidos no páteo Doi-Codi e Andrade os reconheceu ao passar ao lado dos corpos, voltando de um depoimento no Dops. Este é mais um elemento que indica que a versão de tiroteio é falsa.

A audiência foi encerrada com os testemunhos do ex-preso político Gilney Viana, assessor da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, e da ex-militante da ALN, Iara Xavier Pereira, irmã de Iuri e Alex, que ingressou nos quadros da ALN ainda adolescente, prestando apoio logístico em algumas ações.

Foi de Iara o pedido para que a audiência de ontem e hoje fosse realizada. Ela também contou da dificuldade para sepultar seus irmãos dignamente, uma vez que eles foram enterrados como indigentes e com nomes de guerra pela repressão, o que dificultou a localização de seus locais de sepultamento pela família.

Iara também foi companheira de Arnaldo Cardoso Rocha, cujo caso e laudo será apresentado na parte de hoje (25 de fevereiro) da audiência pública, prevista para começar às 10h. Dois ex-agentes públicos foram convocados pela CNV para prestar esclarecimentos. Mais informações sobre o caso abaixo.

A audiência foi conduzida pelo presidente da Comissão Rubens Paiva, deputado Adriano Diogo. A inquirição das testemunhas foi feita em conjunto pelos membros da CNV, José Carlos Dias e Maria Rita Kehl, e por Diogo.

MORTES NA RUA CAQUITO - Hoje, a audiência tratará sobre o crime da rua Caquito, Penha, em 15 de março de 1973. No episódio foram vítimas fatais Arnaldo Cardoso Rocha, estudante, 23 anos; Francisco Emmanuel Penteado, estudante, 20 anos e Francisco Seiko Okama, metalúrgico, 25 anos.

A versão oficial aponta que Os três militantes são localizados na rua Caquito por uma viatura de patrulhamento e recebem voz de prisão, mas reagem a tiros. Dois morrem no local, um foge e é morto nas proximidades por outros policiais.

Várias incongruências foram descobertas no caso: 1) Tanto Arnaldo quanto Francisco Okama são atingidos por tiros fatais desferidos de cima para baixo no canto externo do supercílio direito; 2) Corpo de Arnaldo tinha diversas fraturas na mão direita, gesto característico de defesa; 3) Um dos tiros em Francisco Penteado foi de cima para baixo; 4) Apesar do intenso tiroteio não houve perícia de local; 5) Amílcar Baiardi revelou depois de ser libertado do Doi-Codi ter visto da janela de sua cela, a distância, dois jovens feridos, sendo interrogados sob os uivos dos agentes. Depois da sessão de espancamento, eles foram deixados ali por uma hora, até serem levados no rabecão do IML. Um deles era chamado de japonês pelos agentes. Pela data em que ocorreu este fato, Baiardi associa o episódio à morte do trio.

A CNV e a USP-Ribeirão Preto apresentarão na audiência laudos divulgados em dezembro de 2013 que desmontam a versão oficial sobre as morte de Arnaldo, que ocorreu quando ele já estava dominado pela polícia.

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