Um papa sem blindagem?

                                                                       
                                                                                                            Al-Jazeera
          

Muniz Sodré (*)

      
Até agora, o Papa Francisco está ganhando a batalha da comunicação. Para começar, será capa do Time em sua próxima edição, com o título de “Papa do povo”. Por toda parte, rádio e televisão a ele se referem como “humilde”, palavra que, como bem se sabe, vem do latim humus, “terra”. Para religiosos ou não-religiosos, não deixa de ser alentador assistir ao esforço de um líder espiritual para relativizar o seu lugar na esfera da transcendência mística, baixando ao chão-de-terra.

São várias as frentes, aliás, em que o Sumo Pontífice da igreja católica tem deixado claro as suas posições renovadoras, desde a diferença entre política com maiúscula e minúscula (uma releitura da distinção feita pelo pensador comunista Antonio Gramsci entre “grande” e “pequena” política) até a condenação aberta ao neoliberalismo. Para gente habitualmente muito crítica como o teólogo Leonardo Boff, seria mesmo possível compará-lo a Francisco de Assis que, no passado, se sentiu chamado a reconstruir a igreja.

Além da reorientação no sentido da pobreza, o papa Francisco estaria investido do mesmo apelo em face de uma igreja abalada por escândalos de pedofilia em todos os escalões, assim como pelo vazamento ao público dos negócios escusos do Banco do Vaticano. Na realidade, estes dois aspectos parecem estar ligados: o cardeal da corrupção financeira é o mesmo do mais recente escândalo sexual. Com uma corte “sagrada” dessa natureza, nunca foi tão difícil ser papa quanto agora.

Daí, a importância da batalha da comunicação, este novo céu na terra, que neutraliza por meio dos paraísos artificiais da retórica e do digital as tensões do mundo real-histórico. Nesses “paraísos”, não existe essa coisa ambígua ou perigosa chamada “rua”. Existe, sim, via, que significa “caminho” e designa mais propriamente o “trajeto num caminho”, como numa “viagem”, ou o trajeto do martírio de Cristo, a Via Crucis. Diferentemente de rua, a via pode ser marítima, aérea ou mesmo eletrônica. Nas línguas anglo-saxônicas, rua deriva de stret (street, Strasse), mas por intermédio de via – via strata, que é o caminho pavimentado – daí, “estrada”.

A via, o caminho e a estrada são aberturas no espaço físico ou abstrato-eletrônico considerado em si mesmo, sem necessidade de remissão à humanidade de um território para o seu perfeito entendimento. O que faz o papa Francisco? Espiritualiza as vias, incluindo em seu apostolado a internet. Assim, já se pode ter o pecado perdoado por meio do Twitter.

Atitude repressiva

Para que não haja mal-entendidos, ressalvamos desde já que nada temos contra o emprego dos recursos avançados da tecnologia da informação na batalha pela reconstrução da fé. Afinal, segundo recentes pesquisas divulgadas na imprensa, os jovens parecem ter mais fé na eletrônica do que no sagrado. Este último seria apanágio dos mais velhos.

Mas há questões que merecem uma pausa para se pensar, sobretudo a propósito da distância entre a retórica midiática e a realidade da vida social. Uma delas é a questão do aborto, contra o qual cerram fileiras as alas mais conservadoras da igreja católica brasileira. Nisto estão de mãos dadas com seus mais empedernidos rivais na luta pela administração de almas, que são os evangélicos, cada vez mais imiscuídos na vida política. Este é um ponto delicado à espera de alguma luz renovadora e que já tem marcha de protesto marcada para acontecer. Não em “via” eletrônica, mas nas ruas de Copacabana, onde mulheres católicas carregarão cartazes com frases do tipo “Tirem seus rosários dos nossos ovários”.

Outra questão melindrosa foi levantada no mês passado, no jornal El País, pelo colunista Antonio Elorza: o tópico retrógrado do exorcismo. Narrava ele uma cerimônia desta natureza transcorrida em Pontevedra, onde o exorcista dialogava com o suposto demônio, que falava em galego e, depois de muita conversa, concordou em abandonar o corpo da vítima, mas avisando perversamente: “Vou sair pelos olhos”. E o sacerdote: “Não, que assim você o deixaria cego”. E o Belzebu terminou aceitando sair pela sola do pé.

Para o colunista, este fenômeno, já qualificado como “psiquiatria do subdesenvolvimento”, é mais um dos pontos obscuros incompatíveis com a modernização da fé. No entanto, persiste: ele queria comentar precisamente o episódio recente da nomeação de oito exorcistas para a diocese de Madri pelo arcebispo Rouco. Em outras palavras, o integrismo religioso, favorecido durante a era Ratzinger, continua forte e renegando a lição do papa João XXIII, que abria as portas para a ligação da fé com a razão. No Brasil, é a mesma coisa: contam-se às dezenas os sacerdotes-exorcistas, que não raro se valem de parecer psiquiátrico para determinar se o caso é de demônio ou de doença mental pura e simples.

Em princípio, não deveria tanto incomodar à consciência esclarecida fato de que seu próximo possa entrar no túnel do tempo para trazer de volta sociedade atual a visão agostiniana sobre a encarnação do Mal. Acredita no diabo quem tem secreta ou aberta atração por esta hipótese. Afinal de contas, dirão os crentes, o próprio Deus permitiu que Satanás castigasse Jó com ulcerações dos pés à cabeça – o demônio seria Deus de costas. Enfim, acredita nele quem espera o sono da razão para sonhar com monstros.

Por que então isso causa algum desconforto? É que, neste ponto, católicos e seus pares fundamentalistas contribuem para fazer do retorno do diabo um pretexto para se blindarem com a atitude repressiva que conota todas as diferenças (sexuais, feministas, políticas e religiosas) como as personificações do Mal na sociedade contemporânea.

Talvez a renovação da Igreja dependa mais de questões desta ordem do que de blogs, tuítes ou “papamóvel” sem blindagem.

(*)Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio do Janeiro (Com o Observatório da Imprensa)

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