A RENÚNCIA DO PAPA

                                                                   
                                                                              
Cenas inéditas no Vaticano

Alberto Dines em 19/02/2013 na edição 734

      
Um jornalista que começou a trabalhar no início dos anos 1960 terá acompanhado pelo menos quatro sucessões na Santa Sé: a passagem de João XXIII para Paulo VI (1963), deste para João Paulo I (1978), deste para João Paulo II em 1978, deste para Bento XVI em 2005 e agora, em 2013, deste para o cardeal que o sucederá em meados de março.

Em 50 anos, duas sucessões surpreendentes: a de 1978, quando o 262º pontífice, João Paulo I, permaneceu apenas 33 dias no trono; e em 2013, quando o 264º papa renunciou por livre e espontânea vontade. O renunciante anterior, Gregório XII (em 1415, há cerca de 600 anos), foi forçado: se não desistisse criaria uma cisão irreparável no seio da igreja.

Os jornalistas que acompanharão a substituição de Joseph Ratzinger em Roma ou nas baias das redações do resto do mundo deverão deparar-se com situações insólitas, inéditas, contrastando vivamente com um papado de oito anos linear, lacônico, quase burocrático.

Esta primeira semana do intervalo pontifício exibiu claramente as dificuldades para conciliar os novos cânones do jornalismo com as sutilezas e os imponderáveis que impregnam cantos e recantos da Santa Sé.

No intrincado, atravancado e indevassável sistema de poder do Vaticano se justapõem rituais rígidos, antagonismos agudos, profundas preocupações teológicas, indeclináveis interesses pessoais, intensos anseios espirituais, pragmatismos prementes, tudo isso num cenário com dois mil anos de história.

Roteiro luterano

Embora não houvesse carência de espaço ou tempo, nem a mídia impressa nem a eletrônica conseguiram oferecer aos respectivos públicos as primeiras chaves para entender o drama – é um drama, doloroso como todos.

O pretexto da renúncia (ou abdicação?) era a fragilidade de um sacerdote de 85 anos que não aguentava as tremendas pressões da função e dos desafios proporcionados pela conjuntura. Para justificar a versão oficial, a máquina de informações do Vaticano rapidamente noticiou que Bento XVI implantara um marca-passo e, logo em seguida, que sofrera em seus aposentos uma contusão na cabeça quando visitava o México (fatos conservados a sete chaves até então).

A despeito da alegada debilidade, eis Joseph Ratzinger numa maratona de eventos e pronunciamentos nas quais exibe grande firmeza e coragem moral. Depois de anunciar seu afastamento, logo veio a denúncia contra a hipocrisia e o carreirismo religioso e, no último sermão para os sacerdotes da diocese romana, um apelo para a verdadeira renovação eclesial, o retorno ao espírito do Concílio Vaticano II (cujo sentido, segundo o papa, foi deformado pela mídia) e a advertência para que não se repitam os erros dos católicos alemães durante o Holocausto.

O sermão de 45 minutos foi ovacionado de pé pelos presentes, cena jamais vista no Vaticano.

Os porteiros das redações ficaram desnorteados: o último teólogo alemão que denunciou hipocrisias na Santa Sé foi Martinho Lutero, há meio milênio (1517), quando investiu contra a venda de indulgências e criou o maior cisma dentro cristianismo. Não ocorreu aos vaticanistas de plantão acionar o Google para saber o que aconteceu em 2008, quando Bento XVI, em visita oficial à Alemanha, fez um roteiro algo luterano seguido de um candente desmentido do cardeal Tarcisio Bertone, o camerlengo do papa, de que não se cogitava reabilitar o patriarca do protestantismo. Mas as críticas de Lutero dirigiam-se diretamente ao “sacerdotalismo” (o carreirismo religioso mencionado por Ratzinger), que barrava e distorcia o contato dos cristãos com o objeto de suas crenças.

Próximos capítulos

A crítica que Bento XVI fez à mídia foi praticamente omitida do noticiário no Brasil: quem costuma criticar a mídia é a esquerda bolivariana, impensável que um papa considerado “conservador” acuse frontalmente uma imprensa geralmente sensível aos interesses das cúrias e, em alguns casos na América Latina, tão submissa ao Opus Dei.

Bento XVI certamente não interferirá na escolha do sucessor e viverá rigorosamente recolhido. Mas Bento XVI é um intelectual, intelectual alemão, comprometido com suas convicções íntimas, atento às diferentes acepções da palavra Gheist – espírito, moral, alma, compreensão superior, transcendência.

Seu pontificado logo será encerrado. Nada impede que comece um apostolado. Convém preparar-se: muitas cenas inéditas ocorrerão no Vaticano. (Com o Observatório da Imprensa)

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