"A cicatriz que não fecha." Vamos ler este artigo de "Carta Maior"?


                                                                  
Mesmo em fileiras da esquerda há quem pense que o passado passou.

É melhor não revolver o sangue, o grito, o medo, a dor.

O desamparo dos lábios cerrados em comissuras retesadas no instante em que nem soluçar conseguiria mais restituir a compostura humana a corpos e almas que padeceram e pereceram nas mãos do aparato repressivo da ditadura militar brasileira. 

Mesmo em fileiras progressistas há quem pense assim.

Com certo conformismo diante do gosto amargo de uma anistia que absolveria Sergio Paranhos Fleury, se vivo ele fosse.

Se vivo fosse, aos 79 anos, poderíamos cruzar na mesa vizinha do restaurante de domingo com o rosto gorduroso definido pelos olhos injetados da droga e borrados permanentemente de respingos de morte. 

Não é preciso dizer mais sobre uma anistia delimitada nos estertores da ditadura que ignorou a relação de causalidade entre mortos e vivos que se cruzaram nas salas do horror e da inclemência.

Ela persistiria assim, humilhante, já na democracia, quando sete togas definiram uma maioria na Suprema Corte para indeferir a ação da Ordem dos Advogados do Brasil

Era 29 de abril de 2010. 

Por sete votos a dois, o STF reiterou o perdão a policiais e militares acusados de praticar assassinato e tortura durante o regime militar. 

Uma reiteração que absolveria de novo Sergio Paranhos Fleury, se vivo ele fosse.

Apenas dois ministros - ele, Ricardo Lewandowski, mas desta vez também Ayres Brito - endossaram o clamor da OAB.

E disseram não à impunidade de quem seviciou e subtraiu a vida a corpos inertes e indefesos. ídeos de um capítulo nada edificante.

Os sete que legitimaram a anistia extensiva a um Fleury, se vivo fosse, condenariam Dirceu e Genoíno apenas dois anos depois. 

Como bandidos da democracia.

Sorte Fleury não estar vivo. 

Mesmo em fileiras democráticas há quem pense assim do constrangimento poupado por uma morte suspeita e sem autópsia, ocorrida em 1º de maio de 1979. Três meses e 27 dias antes da Lei da Anistia ser sancionada pelo ditador João Figueiredo.

Espirais de esquecimento flutuam nessa atmosfera de conveniência pegajosa.

Aqui e ali um golpe na boca do estômago rompe a indiferença e esfrega o conforto na poça de sangue a que foi reduzido o pai de um amigo. 

Ou o desnorteia na labirintite da alma de quem espera para sempre por entes queridos transformados em sombras sem corpos. 

Visitas que nunca chegam. Vozes que falam através do silêncio.

Logo a normalidade sopra as espirais hipnóticas.

Mas todo o esquecimento se esfarela quando o próprio esquecido emite um uivo de horror.

E diz ser preferível a morte à angústia de um passado que não passa. Tão funda foi a ferida aberta dentro da cabeça e ao mesmo tempo tão perto ela chegou do coração.

Carlos Alexandre Azevedo, de 37 anos, filho do jornalista Dermi Azevedo e da pedagoga Darcy - presos pela equipe de Fleury, em janeiro de 1974, porque deram guarida a militantes da esquerda católica - suicidou-se no último sábado (16/02). 

O relato de Luciano Martins Costa ('Morrer aos poucos') irradiou seu desespero silenciosamente pela internet. E contagiou quem leu.

Carlos tinha um ano e oito meses quando foi torturado nas dependências do DOPS em SP, pela equipe de Fleury.

A dor que o trincou por dentro nunca mais cicatrizou.

A exemplo de Frei Tito, outra vítima do bando de Fleury, que se enforcou na França, em 1974, Carlos Azevedo saiu da vida por não suportar mais a contradição incomoda que argui a anistia referendada pelos sete do Supremo.

Ser ao mesmo tempo uma cicatriz aberta, e uma página virada da história política brasileira.


Postado por Saul Leblon às 20:33 (Com Carta Maior)

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