Uma recuperação da memória do PCB

                                                                     
                                                                      
É raro que sejam mencionados na mídia os militantes e dirigentes do PCB assassinados pela ditadura militar. Milton Pinheiro, professor e pesquisador baiano, publicou agora belo trabalho sobre os mártires do PCB.


De modo geral, quando se fala de vítimas da ditadura, o foco é reservado aos mártires de partidos e grupos que se lançaram à tática de luta armada contra o regime militar. Mas isto não ocorre por acaso: falo do assunto no Prefácio a meu livro Dois estudos para a mão esquerda, em trecho transcrito ao final desta matéria (*).

Milton Pinheiro, com este artigo, contribui valiosamente para a correção dessa falha de memória. Além de professor da Universidade Federal da Bahia, ele é diretor do Instituto Caio Prado Jr, editor da revista Novos Temas e pesquisador, com ativa participação na mídia alternativa. Neste trabalho, foi buscar documentação em acervos universitários e entidades de direitos humanos. Ver em Correio da Cidadania aqui e na transcrição a seguir.

Correio da Cidadania – 21.12.12
A ditadura militar no Brasil (1964-85) e o massacre contra o PCB

Milton Pinheiro

Para Neide Alves Santos, comunista morta pela ditadura

Só vos peço uma coisa: se sobreviverdes a esta época, não vos esqueçais!
Não vos esqueçais nem dos bons, nem dos maus.
Juntai com paciência as testemunhas daqueles que tombaram por eles e por vós.
Um belo dia, hoje será o passado, e falarão numa grande época
e nos heróis anônimos que criaram a história.
Gostaria que todo mundo soubesse que não há heróis anônimos.
Eles eram pessoas, e tinham nomes, tinham rostos, desejos e esperanças,
e a dor do último entre os últimos não era menor do que a dor do primeiro,
cujo nome há de ficar.
Queria que todos esses vos fossem tão próximos como pessoas que tivésseis
Conhecido como membros da sua família, como vós mesmos

Julius Fuchik

No dia 4 de novembro, a militância revolucionária brasileira compareceu à Alameda Casa Branca, em São Paulo, ao local onde foi assassinado o líder comunista Carlos Marighella, para prestar-lhe mais uma homenagem. É um ato coberto por um grande simbolismo, com a presença de históricos militantes da causa revolucionária no Brasil, mas também com a presença daqueles que representam, nos dias atuais, a luta e o desejo da nossa classe em prosseguir fazendo história e perseverando na luta pela revolução socialista.

Marighella, heróico combatente contra a ditadura burgo-militar, tombou nesta data pela cilada covarde da repressão, em 1969. No entanto, não tombaram seus sonhos e ideias. Homens e mulheres, juventude aguerrida e trabalhadores, continuam em marcha para confeccionar no palmilhar do dia-a-dia a esperança do mundo emancipado da exploração do homem pelo homem.

Mas, ao voltar-me para Carlos Marighella, nesta justa homenagem, desperto para a luta sem trégua dos seus camaradas do Partido Comunista Brasileiro (PCB), operador político no qual Marighella foi militante, parlamentar e dirigente durante 33 anos da sua vida, saindo dele por divergência na forma de enfrentar a ditadura burgo-militar, dois anos antes de ser assassinado.

O ódio de classe exercitado pela burguesia durante todo o século XX contra o PCB foi levado às últimas consequências pela ditadura militar: eles prenderam, torturaram e mataram os militantes mais destacados de um operador político que teve seus erros no pré-1964, mas que resolveu articular uma ampla luta de massas contra a ditadura burgo-militar, e por isso pagou um gigantesco preço, que foi regado com sofrimento e sangue de seus militantes.

Logo no primeiro momento, quando se estabeleceram as trevas golpistas que cortaram as luzes da democracia em construção, no último dia de março de 1964, a burguesia e seu aparato militar/policial repressivo partiu para cima dos comunistas. Era a bota de chumbo pisando o sol da liberdade, e começaram a ceifar as vidas da vanguarda comunista. E a primeira vítima foi o estivador e sindicalista Antogildo Pascoal Viana (AM), assassinado no dia 8 de abril de 1964.

Seguiram-se a ele, ainda em 1964, os seguintes camaradas: o operário eletricista e sindicalista Carlos Schirmer (MG), no dia 1º de maio; Pedro Domiense de Oliveira (BA), sindicalista e líder dos posseiros urbanos, assassinado no dia 7 de maio; Manuel Alves de Oliveira (SE), militar assassinado no dia 8 de maio; o gráfico e sindicalista Newton Eduardo de Oliveira (PE), morto em 1º de setembro; o líder camponês João Alfredo Dias (PB), conhecido como “nego fubá”, sapateiro e ex-vereador, sacrificado pela repressão em 7 de setembro; ainda no dia da pátria, também foi assassinado o líder camponês e presidente das ligas camponesas de Sapé, Pedro Inácio de Araújo (PB); no dia 15 de novembro a ditadura matou o gráfico Israel Tavares Roque (BA) e no final do ano de 1964 e/ou começo de 1965, o marítimo catarinense Divo Fernandes D’oliveira.

Ao todo, em 1964, a ditadura matou 29 militantes que lutavam contra o arbítrio, sendo nove do PCB. Esses dados podem não conter desaparecimentos e algumas mortes estranhas, não computadas diretamente à repressão. Mas, com certeza, em virtude da ação criminosa do Estado ditatorial naquele momento.

Em 1965, a sanha assassina da ditadura matou o ex-militar, que havia participado das lutas dos tenentes com Luiz Carlos Prestes, Severino Elias de Melo (PB). E em 10 de outubro de 1969, matou João Roberto Borges de Souza (PB), que era líder estudantil e vice-presidente da UEE da Paraíba.

O recrudescimento da ditadura avançou após o AI-5 em 1968, uma parte importante da esquerda brasileira, rompida com o PCB, enfrentava as trevas de armas na mão, sofrendo o massacre da ditadura. O PCB, consciente da necessidade de colocar as massas no processo de resistência, desenvolvia seu trabalho.

No decorrer de 1971, o terror da ditadura matou muitos revolucionários. Novamente voltou a eliminar comunistas do PCB. Já no dia 2 de fevereiro, era assassinado o sindicalista José Dalmo Guimarães Lins (AL); já o ex-militar, ex-bancário e funcionário da Embratel Francisco da Chagas Pereira (PB) está desaparecido desde 5 de agosto deste ano; e o sapateiro comunista, organizador de trabalhadores do garimpo em Jacundá (PA), Epaminondas Gomes de Oliveira (MA), foi assassinado em 20 de agosto.

Em 1972, foram mortos pela repressão o militante secundarista Ismael Silva de Jesus (GO), no dia 9 de agosto (torturado até a morte) e Célio Augusto Guedes (BA), dentista de histórica família de comunistas baianos (irmão de Armênio Guedes), que trabalhou diretamente com Prestes e exerceu várias funções dentro do partido. Foi morto em 15 de agosto, sob tortura, após ser preso na fronteira do Brasil com o Uruguai.

O herói da segunda guerra José Mendes de Sá Roriz (CE), líder dos combatentes, e que salvou da morte no campo de Batalha o marechal Cordeiro de Farias, teve seu filho e neta seqüestrados pelo Exército, que exigiam, sob tortura do filho, a prisão dele para liberar os reféns. O comunista se entregou ao marechal Cosme de Farias. No entanto, foi assassinado na mais cruel tortura no dia 17 de fevereiro de 1973.

Mas o pior ainda estava por vir. A ditadura fascista iria caçar os comunistas brasileiros, aprofundava-se em 1974 uma longa perseguição, planejada para liquidar o PCB, cuja política de resistência democrática se consolidava na frente ampla contra o regime. No começo do ano, em 19 de março, foram assassinados Davi Capistrano da Costa (CE) e José Roman (SP). O primeiro era um importante dirigente comunista, militar, havia participado do levante de 1935, quando foi preso por sua participação. Fugiu de Ilha Grande e foi lutar, em 1936, na Espanha ao lado dos republicanos como brigadista internacionalista. Participou de forma heróica na batalha de Ebro, que ocorreu entre julho e outubro de 1938. Ainda em 1938, foi para a França, onde lutou na resistência à ocupação do nazismo. Foi preso pelos nazistas e, por ser estrangeiro, não foi executado no primeiro momento, mas foi levado para o campo de Gurs, na Alemanha hitlerista. Quando foi libertado pesava 35 quilos. Voltou ao Brasil, foi preso novamente em Ilha Grande, e, com a democratização, se elegeu deputado estadual por Pernambuco, em 1947. David Capistrano foi eleito para o Comitê Central (CC) no IV congresso em 1954. Com a instalação da ditadura, saiu do Brasil e, ao voltar, foi preso e assassinado. O metalúrgico José Roman era um destacado militante operário, foi preso ao ir buscar David Capistrano em Uruguaiana.

O massacre continuava em 1974. O dia 3 de abril seria marcado por uma grande tragédia: foram mortos três heróis do povo brasileiro. O operário metalúrgico João Massena Melo (PE) foi preso em São Paulo e assassinado pela repressão. O dirigente metalúrgico foi vereador pelo Distrito Federal, em 1947, e deputado estadual pelo estado da Guanabara, em 1962. Era membro do CC do PCB e seu corpo continua desaparecido.

Nas mesmas condições, também foi preso e morto Luiz Ignácio Maranhão Filho (RN). Jornalista, deputado estadual eleito em 1958 pelo Rio Grande do Norte, visitou Cuba a convite de Fidel Castro, sendo membro do CC do PCB. O jornalista e dirigente comunista esteve preso em vários momentos da história republicana. E o oficial do Exército Walter de Souza Ribeiro (MG), ativo militante das lutas pela paz, era membro do CC do PCB e atuava na estrutura interna do partido.

O professor de História, Afonso Henrique Martins Saldanha (PE), foi morto em 8 de dezembro em virtude das torturas que sofreu na cadeia. Foi presidente do sindicato dos professores da cidade do Rio de Janeiro por dois mandatos, sendo cassado no segundo, antes mesmo de tomar posse. Era um militante destacado das bandeiras comunistas no movimento docente.

No ano de 1975, a repressão seria mais violenta ainda com o PCB. Logo no dia 15 de janeiro, dois lutadores da causa dos trabalhadores são eliminados em São Paulo. Elson Costa (MG), membro do CC do PCB e líder da greve dos caminhoneiros em Minas Gerais, foi preso e assassinado, e até hoje seu corpo continua desaparecido. E Hiran de Lima Pereira (RN), preso e assassinado nas mesmas circunstâncias. Membro do CC do PCB, foi importante quadro da vida pública, sendo secretário de Administração de Miguel Arraes na prefeitura de Recife. Em seguida, no dia 4 de fevereiro, era preso e assassinado no Rio de Janeiro o jornalista e advogado Jayme Amorim de Miranda (AL). Grande organizador das lutas operárias e de massas pelo Brasil, foi preso várias vezes e sofreu tentativa de homicídio. Esteve na URSS e exerceu intensa atividade na imprensa comunista; seu corpo até hoje não foi encontrado.

Em abril, foi preso e assassinado o líder camponês Nestor Veras (SP). Organizador das lutas camponesas que teve intensa presença entre os trabalhadores sem terra, foi fundador e responsável pelo jornal Terra Livre e dirigente da ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícola do Brasil). Era membro do CC do PCB e seu corpo está desaparecido até hoje. No mês de maio, no dia 25, era preso e assassinado o operário da construção civil Itair José Veloso (MG). Líder operário, foi primeiro sapateiro e depois passou a atuar na construção civil, sendo eleito dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Niterói e Nova Iguaçu, e foi eleito secretário-geral da Federação dos Trabalhadores da Construção Civil. Itair Veloso esteve, através de delegações sindicais, na URSS e China. Membro do CC do PCB, seu corpo continua desaparecido.

No segundo semestre, em 7 agosto, morria Alberto Aleixo (MG) em virtude da tortura. Estava preso desde janeiro e não resistiu aos maus tratos. Foi um militante gráfico, sendo responsável pela gráfica do partido, e exerceu uma longa jornada de trabalho na imprensa comunista. Era irmão do vice-presidente de Costa e Silva, Pedro Aleixo. No dia seguinte, 8 de agosto, era assassinado sob tortura o tenente da PM de São Paulo, José Ferreira de Almeida (SP). Policial militar da reserva, exercia uma intensa atividade na PM paulista e integrava o grupo interno de militares do PCB. No dia 18, ainda no mês de agosto, morria em virtude das torturas o coronel reformado da PM/SP, José Maximino de Andrade Netto (MG), que havia sido cassado em 1964. O militante comunista foi preso em 11 de agosto de 1975 e sofreu intensa tortura, até morrer em um hospital de Campinas. Também fazia parte do coletivo de militares do partido.

A repressão continuava caçando o PCB. No dia 17 de setembro, o dirigente do partido no estado do Ceará, Pedro Jerônimo de Souza (CE), comerciário que se encontrava preso desde 1975, foi morto sob tortura. Pouco tempo depois, no dia 29 de setembro, era preso e assassinado o dirigente da juventude comunista, José Montenegro de Lima (CE). Ativo dirigente estudantil, foi diretor da UNETI (União Nacional dos Estudantes Técnicos Industriais) e contribuiu para formular as posições do PCB na área juvenil. Teve grande participação na articulação de organismos da juventude internacional no Brasil (FMJD). Seu corpo não foi localizado até hoje.

Quando chegou o mês de outubro, a ditadura fez outra vítima, agora o destacado dirigente comunista Orlando da Silva Rosa Bomfim Júnior (ES). Foi preso e assassinado sob tortura no dia 8 e seu corpo ainda não foi encontrado. Orlando Bomfim foi jornalista e advogado, tendo sido vereador do PCB por Belo Horizonte, em 1947. Era membro do CC e exerceu intensa atividade jornalística. Para fechar o ano de 1975, a repressão assassinou, sob tortura, Vladimir Herzog (Croácia), no dia 25 de outubro. Herzog era professor da USP e jornalista, militante da base cultural do PCB em São Paulo, assassinado após se apresentar no DOI-CODI para prestar depoimento.

A ditadura dava sinais de exaustão, as eleições municipais de 1976 corriam risco de ser canceladas e a política do PCB começava a ser vitoriosa na ampla frente democrática. Mas a repressão ainda ceifaria as vidas de comunistas naquele ano. No dia 7 de janeiro, era morta a militante comunista Neide Alves Santos (RJ). Essa mulher de convicção profunda foi a única comunista, do PCB, morta pela ditadura. Era militante do setor de propaganda e atuava juntamente com Hiran de Lima Pereira. Ela havia sido presa em 6 de fevereiro de 1975 e encaminhada para DOI-CODI/SP e depois para o DOPS/RJ, encontrada morta em via pública com sevícias por todo o corpo. Dez dias depois da morte de Neide, era assassinado, sob tortura, no dia 17, o operário metalúrgico Manoel Fiel Filho (AL), que era responsável pela distribuição da Voz Operária nas fábricas da Mooca. Foi preso no dia 16, levado para o DOI-CODI/SP e assassinado em seguida.

No dia 29 de setembro, ainda em 1976, era assassinado sob tortura o operário Feliciano Eugênio Neto (MG). Histórico militante comunista, realizou tarefas com Maurício Grabois e Carlos Danielli, foi operário da CSN e vereador em Volta Redonda. Após ser cassado, foi ser operário no ABC paulista. Era responsável pela distribuição da Voz Operária no estado de São Paulo, até ser preso em 2 de outubro de 1975.

Em 1977, o PCB teve seu último militante assassinado pela ditadura. No dia 30 de setembro era morto sob tortura, nas dependências da 1ª CIA da PE do Exército no Rio de Janeiro, o professor Lourenço Camelo de Mesquita (CE). Ativista muito conhecido, exercia sua militância no comitê do partido na Estação Ferroviária da Leopoldina.

O PCB foi massacrado de 1973 a 1976 por uma operação realizada pelo Exército – tratava-se da “Operação Radar”, que tinha como objetivo liquidar o histórico operador político dos comunistas brasileiros. Essa era uma das medidas impostas pela geopolítica arquitetada por Golbery do Couto e Silva para flexibilizar a ordem política brasileira.

Foram 39 militantes assassinados, nas mais diversas modalidades, desde o primeiro momento do golpe até o começo da chamada “distensão” do regime militar. Para além dessas mortes, o PCB teve milhares de prisões, centenas de presos que passaram pela mais atroz tortura, sem falar nas dezenas de exilados que foram viver o desterro em várias partes do mundo.

Por que tanto ódio da burguesia a este partido? Talvez seja possível responder: o PCB luta ao lado da nossa classe, não tem nenhum acontecimento que diga respeito aos interesses dos trabalhadores na história do Brasil que não tenha tido a participação decidida dos comunistas. O sangue dos militantes do PCB tingiu de vermelho as bandeiras das lutas operárias de 1922 até 1977. A luta do PCB é pela revolução socialista no Brasil. Superados os equívocos da sua formulação, pois errou porque lutou, o PCB quer estar ao lado de todos aqueles que lutam pela emancipação humana na vanguarda da revolução brasileira. O ódio da burguesia é contra as ideias do socialismo e contra o partido que luta para operar essa tarefa histórica.

Vida longa aos heróis da revolução brasileira que tingiram com seu sangue a bandeira da liberdade.

Artigo elaborado a partir de pesquisas realizadas nos arquivos do IEVE, CEDEM/UNESP, AEL/UNICAMP, no Arquivo Público do Estado de São Paulo e nos dados da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Milton Pinheiro é Professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), diretor do Instituto Caio Prado Jr. (ICP) e editor da revista Novos Temas.

(*) No Prefácio a meu livro Dois estudos para a mão esquerda (Revan, 2ª edição, janeiro de 2013), faço algumas observações sobre o assunto:

Tenho também em vista abrir mais lugar ao sol para a versão do PCB a respeito daqueles anos sofridos de luta.

Ocorreu no Brasil, nas últimas décadas, um caso singular de negação da máxima segundo a qual a história é feita pelos vencedores. Quase ninguém dá crédito à versão destes, no caso da ditadura militar no Brasil. A coalizão de direita que deu o golpe de Estado em 64, dominou o país com mão de ferro durante 20 anos, de certa forma controlou a passagem de governo militar para civil e permanece no poder até hoje não conseguiu impor sua versão da história. Ao contrário, nos currículos escolares, na imprensa, na literatura política, em toda parte predomina a versão correta: aquela foi uma ditadura ilegítima e brutal de direita.

Trata-se portanto de um raro caso de história feita pelos vencidos. Isto é bom, faz honra a nosso país. Mas os vencidos­-vencedores não formam um corpo homogêneo, e as versões da história que seus diversos componentes apresentam nem sempre coincidem. Há uma tendência na opinião pública a acolher melhor a versão mais romântica e mais teatral, que tem no centro a guer­rilha e, como heróis mais brilhantes, “Che” Guevara, Marighela e Lamarca. A versão dos comunistas, do PCB, não tem muito prestígio entre os chamados “formadores de opinião”.

Para este baixo desempenho do PCB muito contribui o fato de restarem poucos a defendê-lo. Muitos que o faziam morreram, 13 muitos mudaram de idéia, outros mudaram até de lado. O próprio partido implodiu e, na melhor hipótese, espera uma hora melhor para ressurgir. Assim, fica no escuro sua batalha, tão meritória, tão corajosa, tão admirável e tão sacrificada quanto as dos que mais o foram.

O PCB negava cabimento à guerrilha nas circunstâncias brasileiras daquele momento. Dava ênfase à luta de massas e às alianças amplas, com a exploração mais profunda possível das possibilidades de ação dentro da legalidade admitida pela dita­dura. Centrava-se na organização dos trabalhadores em luta por suas reivindicações próprias, no fortalecimento das correntes que defendiam os interesses da democracia e da soberania nacional, na acumulação de forças de massas que seria indispensável à vitória contra um inimigo poderoso, que se sustentava na coesão das Forças Armadas do país, que tinha largo apoio de opinião interna e fortes alianças externas.

Embora não lhe faltasse bravura, o PCB preconizava que a essa virtude deviam aliar-se paciência, tenacidade, argúcia e outras qualidades necessárias a quem tem pela frente um adversário po­deroso. Dizia que à ditadura, e não a seus oponentes, interessava naquelas condições um desafio para o campo da luta armada, pois aí o poder de decisão dela era cem vezes maior. Às forças de oposição convinha organizar na clandestinidade movimentos de massa que se desenrolassem na legalidade, até que se juntassem na reivindicação de democracia forças políticas e sociais tão signifi­cativas e tão mobilizadas que fossem capazes de chegar à vitória.

A muitos, porém, decepcionava essa linha política de paci­ência e expectativa de longo prazo. Lembro de um ex-ministro de Jango, atual deputado, pessoa de sentimentos nobres e patriota, com quem conversei, em l972, numa viagem em que eu passava pelo Chile. Ele estava desde 64 exilado e, naturalmente, queria um relato da luta de oposição no Brasil. Pus-me a falar-lhe dos 14 processos lentos e árduos de nossa luta política. Iniciava-se então o que depois se viu ser o auge da repressão e da tortura no Brasil, e tudo ficava mais difícil, embora em todas as áreas houvesse ânimo e fatos de luta a relatar. Um desfecho vitorioso, porém, só seria visível depois de um período penoso e talvez longo de acumulação de forças.

Súbito, meu amigo explodiu: “Mas assim não é possível! Eu já vou fazer 50 anos, não posso esperar!”

Hoje, é fácil achar graça dessa confusão entre desejo pessoal e tempo histórico. Também é fácil perceber, para engenheiros de obras feitas, o alto grau de imprudência dos que então se lançavam aqui na luta de guerrilha. Na época, porém, este era o estado de espírito dominante em vastas esferas da juventude e da intelectu­alidade de esquerda em nosso país.

Todo o grande e mais que merecido prestígio da revolução cubana estava apostado em favor da opção pela guerrilha. Pressio­nado pela ameaça de invasão norte-americana e isolado entre os governos da América Latina, o governo de Cuba tinha pressa por uma revolução no continente que o socorresse. Projetava para toda parte as circunstâncias singulares do movimento revolucionário ocorrido em seu país e achava que elas podiam e deviam repetir-se em toda parte. “O dever do revolucionário é fazer a revolução”, era o lema, ou, noutra variante da mesma meia-verdade que, na­quelas circunstâncias, resultava em falsidade: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

O Brasil, por sua importância decisiva no continente, tinha é claro lugar privilegiado nessa expectativa cubana. Os comunis­tas brasileiros, devotando sempre admiração e amor à revolução cubana, ficaram porém numa posição difícil. Para sustentar sua própria linha política, tiveram de fazer face a muita hostilidade do governo cubano e de seus aliados de luta armada no Brasil, que acusavam o PCB de passividade e covardia política. Não raro, essa hostilidade chegava à calúnia quanto à honorabilidade pessoal dos militantes do partido.

Não foi portanto fácil ao PCB desenvolver sua ação política naquela situação de acuado. Ele já tinha de conviver com a crise então latente no movimento comunista mundial, que lhe acarretava cisões e inquietações. Era agredido pelos que entendiam os ventos de mudança que sopravam no mundo como um desapreço às orga­nizações de massas e ao partido revolucionário. E ao mesmo tempo tinha de fazer frente à repressão da ditadura militar. Ficou assim sob um verdadeiro fogo cruzado. Manter firmeza, serenidade e ao mesmo tempo dar combate ao inimigo nessas condições era tarefa de mouro, e a leitura deste texto, espero, fará homenagem a isto.

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