Povoado espanhol de 2 mil habitantes está no mapa-mundi da esquerda


                                                                                   
Parceira de Cuba e Venezuela, Marinaleda atrai jornalistas e curiosos de todos os cantos do planeta que desejam conhecer o sistema de participação baseado em assembleias, a divisão do trabalho na 
fazenda ocupada de El Humoso a distribuição de casas populares que evita a especulação imobiliária. Carta Maior contará em detalhes a história de luta deste povoado espanhol em uma série de reportagens a partir dessa segunda-feira. A reportagem é de Naira Hofmeister e Guilherme Kolling, direto de Marinaleda, Espanha.

Naira Hofmeister e Guilherme Kolling, de Marinaleda, Espanha

Marinaleda - No bar do Sindicato de Obreros del Campo (SOC), em Marinaleda, nenhum frequentador respeita a proibição de fumar em locais fechados. Este município de 2 mil habitantes no sul da Espanha tem suas regras próprias e muitas divergem das oficiais editadas pelo Parlamento Nacional e pelo Rei Juan Carlos. Sua majestade, por exemplo, não ocupa a foto ao centro do gabinete do prefeito, Juan Manuel Sánchez Gordillo.

Emoldurado na parede aparece Che Guevara, enquanto detrás de sua mesa, a bandeira da República espanhola acompanha os estandartes da cidade e da Andaluzia, comunidade autônoma a que pertence. “Nosso escudo não tem coroa pela simples razão de que somos republicanos e portanto ninguém pintaria aqui um símbolo monárquico”, justifica o texto na página oficial de Marinaleda.

Se dois forasteiros entram no bar do SOC, ninguém pergunta o que eles vieram fazer ali, como se poderia imaginar que pudesse acontecer em uma minúscula cidade cortada pela estrada A-388 e que não possui nenhum castelo, palácio ou jardim famoso que atraia turistas. “De que país são vocês? Jornalistas, não é?”, dispara o produtor rural Pepele Cordejo, evidenciando a atração que o povoado provoca em profissionais da imprensa e outros curiosos.

De fato, a visita da equipe de Carta Maior a Marinaleda coincidiu com a de um repórter francês da revista L'Humanité Dimanche em um final de semana de setembro. No mês anterior, o município e seu prefeito apareceram em matérias da revista norte-americana Time e do diário inglês Financial Times. Outro periódico de Londres, The Guardian, elegeu Sánchez Gordillo “um dos cinco exemplos de desobediência civil” dos últimos tempos, colocando-o ao lado do líder independentista indiano Mahatma Gandhi.

É certo que ambos compartilharam do mesmo método, a greve de fome, para fazer valer suas reivindicações. Em Marinaleda a estratégia foi aplicada pela primeira vez em 1980, nos primeiros anos de democracia depois da longa ditadura do general Francisco Franco. O município espanhol, porém, recorreu ainda a táticas menos passivas para conseguir a desapropriação de uma fazenda que hoje é administrada por cooperativas de moradores da localidade.

A conquista de El Humoso

Basta citar o assunto da luta pela terra perto do balcão do bar do SOC para atrair a vários frequentadores, todos participantes de alguma atividade relacionada com a desapropriação de El Humoso. Alguns eram ainda crianças quando os pais se rebelaram contra os latifundiários que não produziam em suas propriedades.

Instigada pelo já prefeito Sánchez Gordillo, que desde 1979 não perde uma eleição em Marinaleda, a população iniciou um movimento de ocupação de terras massivo que durou sete anos. Primeiro tomaram um pântano na cidade vizinha de Cordobilla para exigir que o Estado levasse água até a propriedade de El Humoso, que então pertencia ao Duque do Infantado e era improdutiva.

Logo veio a pressão para desapropriar a fazenda. A Junta da Andaluzia comprou uma parte expressiva da área, 1.200 hectares, que passaram a ser geridos pelos trabalhadores.

Hoje, 21 anos depois da conquista das terras, essa porção de chão é o que garante que Marinaleda sobreviva à crise econômica que assola a Espanha, mantendo uma taxa de desemprego bastante inferior à nacional. O trabalho, sazonal, é repartido de maneira que todos os interessados contribuam com o mesmo número de horas na lide do campo, recebendo um salário também idêntico.

Talvez traumatizados com a repressão das forças de segurança do governo durante o período de ocupações de terra, os habitantes de Marinaleda decidiram abrir mão desse serviço na cidade. Não há um só policial nas ruas.

Administração socialista

O bar do SOC e o próprio sindicato ocupam um sobrado branco com janelas e portas pintadas de verde que abriga ainda o auditório do pleno da assembleia de Marinaleda, um órgão consultivo no qual todos os moradores devem tomar assento quando é convocado. 

Nessas reuniões se reparte o trabalho na fazenda de El Humoso e na Humar Agroindústria, também de propriedade das cooperativas. Entre outras coisas é onde se decide quem poderá ocupar cada uma das casas populares construídas coletivamente entre os habitantes sobre terrenos doados pela prefeitura, para evitar a especulação imobiliária e permitir que todos tenham direito à moradia digna.

É também na assembleia que se faz a última etapa da discussão do orçamento participativo - em vigor desde 1979 em Marinaleda - e onde se decide, por exemplo, eventuais subidas de impostos ou modificações na jornada laboral. “Qualquer tema ou problema relativo à cidade levamos à assembleia, em todos os assuntos. Pensamos que a melhor maneira de decidir é coletivamente”, justifica o prefeito.

Oposição inexpressiva

No bar do SOC todos são de esquerda, inclusive aqueles que possuem propriedade privada, como Pepele. Ele, entretanto, não se atreve a participar das assembleias porque diz que seria mal visto pelos conterrâneos.

Juan Manuel Sánchez Gordillo conduz pessoalmente cada uma das discussões públicas, o que faz com que receba críticas de uns poucos moradores pelo excesso de personalismo que confere à cena política local. 

Os integrantes da oposição supostamente se reúnem em outro estabelecimento para tomar suas cervejas e aperitivos enquanto conspiram contra a situação. O local, entretanto, esteve fechado durante os três dias em que estivemos na cidade. Pelas ruas poucos se atrevem a desafiar o sistema implementado pelo prefeito; se o fazem, pedem sigilo sobre sua identidade.

Curioso é que até a oposição em Marinaleda é de esquerda. Entre os 11 vereadores há dois contrários ao governo de Gordillo. São do Partido Socialista (PSOE), embora opinem que o sistema de assembleísmo é desnecessário e defendam que as pessoas devem ter “liberdade para não se unir às marchas e protestos”. 

Do conservador Partido Popular (PP), sigla do presidente do governo espanhol Mariano Rajoy, não há nem sinal. Assim como os conservadores, jovens e mulheres também são uma espécie rara neste estabelecimento da cidade.

Arte subversiva

O ambiente do bar do SOC é igual à maioria dos botecos espanhóis: meia luz, televisão num volume bastante elevado, senhores jogando dominó e tomando “chupitos”, “cañas” e cafés. Ao fundo, entretanto, chama a atenção do visitante uma exposição de fotografias intitulada “Espólio e massacre da Palestina”.

A luta dos palestinos por um território próprio é assunto recorrente na cidade: foi tema da festa anual do povoado em 2008 e também se destaca na fachada de alguns prédios públicos de Marinaleda. Os murais formam um conjunto de pinturas políticas de apoio ao comunismo, realizadas por delegações internacionais que visitaram o município. É uma versão às avessas do East Side Gallery do muro de Berlim.

Ali estão desenhos assinados por espanhóis de diferentes cidades, europeus de países em crise – como a Grécia – e, é claro, de Cuba e Venezuela, cuja relação com Marinaleda é tão estreita que a televisão pública do município retransmite a programação de TeleSur e Cubavisión quando não há grade própria.

Carta Maior contará em detalhes a história de luta deste povoado espanhol em uma série de reportagens a partir dessa segunda-feira. (Com Carta Maior)

Comentários