Mais desoneração e o risco para a Previdência Social


                                                                         
O governo Dilma acabou incorporando essa reivindicação dos representantes do capital e comprando até mesmo o discurso enganoso a respeito dos efeitos positivos da desoneração da folha. Os empresários deixam de contribuir com os atuais 20% e apenas os assalariados pagam os 11%. E como fica a diferença da receita previdenciária, então? 

Paulo Kliass 

A presidente Dilma parece ter gostado do último figurino que alguns ramos do conservadorismo lhe encomendaram. Praticamente a cada semana sua equipe tem anunciado um novo pacote de benesses destinado aos detentores do capital. Aparentemente iludida com a contradição artificial que setores da grande imprensa tentam criar entre os governos de Lula e o seu próprio, ela tenta acrescentar à sua conhecida fama de gerentona a imagem de uma mui generosa governanta para o setor privado. 

Apesar das sistemáticas negativas em elevar os gastos orçamentários com as demandas de matérias oriundas da área social, quando se trata de afagar o capital privado o comportamento de Dilma muda radicalmente. 

Quando as entidades ligadas à área da educação solicitam os 10% do PIB para esse setor, o Ministro Mantega proclama o alarmismo irresponsável: com tal medida, o País quebraria! (sic) Quando as organizações ligadas ao movimento social da terra alertam para os baixíssimos números relativos ao atraso na implementação da Reforma Agrária, o governo diz que não há recursos disponíveis. Quando os funcionários públicos reivindicam melhorias salariais e em suas condições de trabalho, o discurso se repete a respeito da necessidade do cumprimento rigoroso da “política fiscal responsável” e o governo ameaça com a criminalização do movimento. Quando as associações vinculadas ao movimento da saúde pública propõem o fortalecimento do SUS por meio de maiores verbas para a área, tampouco o governo se mostra disposto a assumir compromissos efetivos. Quando as entidades sindicais e as representações dos aposentados exigem o fim do famigerado fator previdenciário, as lideranças do governo dizem que não há como acabar com essa fonte de injustiça criada pelo governo tucano e mantida pelo PT desde 2003. Enfim, a lista das negativas é extensa.

Para benesses ao capital, surgem os recursos “inexistentes”

No entanto, quando se trata de favorecer os interesses dos empresários, aí parece que tudo muda de figura. As portas dos palácios se abrem solenemente para encontros e reuniões. As cerimônias cheias de pompa anunciam as medidas destinadas a beneficiar o capital, sob a falsa argumentação de banalidades como o aumento da competitividade, a geração de empregos, a redução do custo Brasil e por aí vai. 

A esse respeito, a frase do mega empresário Eike Batista é precisa na definição da opção da Presidenta: ao receber a notícia de um dos pacotes de privatização de serviços públicos, resumiu-o como um verdadeiro “kit felicidade” oferecido pelo governo. Era um sorriso só! No entanto, o que é pouco noticiado pelos grandes órgãos de imprensa, a cada novo ato dessa natureza, são os custos associados às medidas. 

Na verdade, trata-se de expressivas despesas orçamentárias da União que passarão a ser efetuadas, quando até o dia anterior o “rigor fiscal” afirmava não haver recursos disponíveis para nada. Como assim, então? Ora, tudo se resolve por uma vontade política e a opção por determinadas diretrizes de governo revela quais são as suas verdadeiras prioridades. Ou seja, quais são os setores da sociedade - aliás, chamemos aqui por seu verdadeiro nome: as tão famosas classes sociais - que estão sendo atendidos de fato.

Em 2010, ainda quando era pré-candidata à sucessão de Lula, Dilma fez um famoso discurso aos prefeitos em Brasília, quando afirmava que não iria fazer “bondade com chapéu alheio”. Agora, quando anuncia sua disposição em ampliar ainda mais o espectro de ramos empresariais a serem beneficiados pela desoneração da folha de pagamentos, não faz mais do que contradizer aquela promessa. Sim, pois está fazendo uma tremenda bondade dirigida ao capital, usando para tanto exatamente o chapéu de aposentados, pensionistas, trabalhadores e integrantes das futuras gerações de brasileiros.

Fim da contribuição patronal: caminho para a privatização

Essa reivindicação dos empresários é antiga. Ela sempre esteve na pauta dos encontros de suas associações classistas, desde ainda os tempos da ditadura. Surfando via de regra na onda geral da demagógica proposta de redução da “carga tributária excessiva”, outras vezes o discurso pende mais para a necessidade de reduzir os “elevados custos da força de trabalho” em nossa terra. 

Quase que obcecados pela radicalização ideológica do raciocínio, os proponentes dessa versão do “menos Estado” não pensam em uma alternativa efetiva para o financiamento da seguridade social, tal como previsto em nossa Constituição. Ao inviabilizar o modelo de previdência pública e universal por meio de redução de suas receitas, abre-se o caminho para a sua privatização. Maquiavelismo ou não, o fato é que a rota traçada não oferece outra alternativa. E o mais impressionante é que o Partido dos Trabalhadores corre o sério risco de passar para a História como sendo o responsável pela implementação de tal estratégia. Uma loucura!

A palavra mágica é a seguinte: desoneração da folha de pagamentos. Um mantra que, de tão repetido, chega a transmitir ares de unanimidade inescapável. Mas a coisa é bem mais complexa do que parece. O modelo de financiamento de nossa previdência social prevê duas fontes de contribuição para manter o sistema em operação: o assalariado recolhe 11% sobre seu salário a cada mês, enquanto a empresa recolhe o equivalente a 20% sobre a mesma base salarial. Com tais alíquotas e com as atuais regras de aposentadoria, a previdência vai bem, obrigado. 

A despeito das enganosas interpretações a respeito do suposto “déficit estrutural”, o fato é que o sistema ainda é superavitário – os números oficiais do Ministério da Previdência Social demonstram isso. É claro que serão necessários ajustes em razão das mudanças na dinâmica demográfica, pois o futuro aponta para menor universo de jovens ingressando no mercado de trabalho em relação ao maior número de aposentados e de maior longevidade, em razão de alta na expectativa média de vida de nossa população. Mas essa é uma discussão completamente diferente da atual.

O governo de Dilma acabou incorporando essa reivindicação dos representantes do capital e comprando até mesmo o discurso enganoso a respeito dos efeitos positivos da desoneração da folha. Os empresários deixam de contribuir com os atuais 20% e apenas os assalariados pagam os 11%. E como fica a diferença da receita previdenciária, então? 

Bom, aí as fórmulas mágicas começaram a sair da cartola – tinha para todos os gostos. O governo optou por uma alíquota a incidir sobre o faturamento das empresas. Ou seja, mudou-se subitamente uma forma de financiamento que, apesar das dificuldades, vinha operando bem por mais de meio século. A opção pode ser caracterizada como um salto no escuro, pois não há nenhuma garantia de bom funcionamento da nova forma de financiamento. Foi uma evidente tentativa desesperada de agradar aos representantes do patronato. Uma verdadeira irresponsabilidade para com o País!

O que era uma experiência localizada, começa se generalizar

No início, o discurso oficial dizia que se tratava apenas de uma experiência de laboratório, apenas 5 setores para verificar se o novo sistema seria viável ou não. Mas o tempo passa rápido e a primeira Medida Provisória (MP) virou a Lei n° 12.546, de dezembro de 2011. 

Os especialistas alertávamos para os riscos de tal estratégia, pois da forma que estava encaminhada a questão, dificilmente haveria espaço para voltar atrás. Logo depois, o número de setores aumentou para 15, pois os que estavam de fora do banquete generoso clamaram contra a discriminação – afinal, todos querem o mesmo direito de mamar de forma isonômica nas tetas do Estado. 

E depois o governo encaminhou ainda outras mudanças nas regras, ampliando o número de setores para 40 e reduzindo a alíquota que incide sobre o faturamento das empresas. A MP 563/12 já foi convertida na Lei n° 12.715 e a Presidenta sancionou a matéria.

O assunto foi tratado pelo governo com tanto “carinho, seriedade e preocupação” para com o futuro da previdência social, que a MP tratava num único texto de assuntos tão díspares, a ponto do complexo e sensível tema da desoneração da folha ser apenas um item a mais (art. 55), em meio a um verdadeiro cipoal de alterações legislativas em outras áreas. Oferecer um texto dessa forma para ser analisado pelos congressistas é uma estratégia ainda mais arriscada, como demonstra a longa lista constante da própria ementa da matéria:

“Altera a alíquota das contribuições previdenciárias sobre a folha de salários devidas pelas empresas que especifica, institui o Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores, o Regime Especial de Tributação do Programa Nacional de Banda Larga para Implantação de Redes de Telecomunicações, o Regime Especial de Incentivo a Computadores para Uso Educacional, o Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica, o Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência, restabelece o Programa Um Computador por Aluno, altera o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (...) e dá outras providências.” 

O problema está criado! Os valores a serem recolhidos sob a forma da alíquota de faturamento são insuficientes para cobrir as despesas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Mas o governo já anunciou sua intenção em cobrir esse rombo com recursos do Tesouro Nacional. Ou seja, vai assegurar mais vários bilhões de reais anuais de subsídio ao setor privado. Mas até quando ocorrerá tal disposição? Daqui a pouco começarão os recorrentes clamores quanto aos gastos exagerados com a Previdência e os conhecidos estudos “demonstrando” seu déficit estrutural crescente. A continuidade dessa forma de financiamento da Previdência Social tende a levar o sistema a uma asfixia em suas fontes de receita, abrindo mais espaço para as proposta de corte de benefícios e mesmo de privatização.

Preservar a Previdência Social é voltar com a contribuição sobre a folha

O cansativo e repetitivo discurso de nossas elites a respeito do custo da mão-de-obra não encontra respaldo na realidade. Há 15 anos atrás, quando PT propunha simbolicamente que o salário mínimo fosse o equivalente a US$ 100, os que hoje clamam pela desoneração diziam que o Brasil não suportaria tal “irresponsabilidade populista”. 

Hoje, a remuneração mínima vale mais de US$ 300 e o mercado de trabalho funciona a todo o vapor. Ora, parece evidente que não são esses 20% de contribuição sobre a folha que trazem dificuldades para a estrutura de custos das empresas. E o governo que se prepare, pois a lista da flexibilização dos encargos trabalhistas considera necessário também eliminar conquistas históricas como 13° salário, FGTS, licença maternidade – tudo em nome da redução do custo Brasil.

Ao movimento sindical e às associações de aposentados não existe outra alternativa que não seja exigir do governo o abandono dessa aventura irresponsável e o retorno à contribuição patronal na base de 20% sobre a folha de pagamentos. O que está em jogo é o futuro da Previdência Social pública e universal. 


(*) Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10. (Com Luta pela Educação-Diário de Classe)

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