Há cinco anos, baixo centro de Belo Horizonte
é ocupado por noite de celebração da cultura hip hop

Joana Tavares,

de Belo Horizonte (MG)
                                                 
                                       
                                          A cultura hip hop ocupa o viaduto Santa Teresa, em Belo Horizonte (MG)
                                                                                                        Imagem: Fora do Eixo/Divulgação


São mais de 250 semanas. 250 semanas em que a parte de baixo do viaduto que já foi símbolo do modernismo da capital de Minas Gerais – o viaduto Santa Tereza – é ocupado por centenas, às vezes milhares de pessoas, de todos os cantos da cidade, para curtir uma noite embalada pela cultura hip hop. “É meio sagrada a coisa, nunca deixa de acontecer. Não é um evento, é um encontro”, afirma Pedro Valentim, o PDR, um dos membros da Família de Rua, coletivo responsável por organizar o Duelo de MC’s. Mesmo após a notoriedade nacional e internacional, com viagens para vários locais, toda sexta-feira à noite lá estão eles.
 
Por volta das nove horas costuma começar. As pessoas vão chegando, se acomodando em algum local em frente ao teatro de arena. Rodas de break se formam e o grafite vai sendo feito. Três semanas por mês ocorre a batalha de free style tradicional – a última sexta-feira é para a dança – em que quem estiver disposto sobe ao palco e improvisa rimas cantadas por 45 segundos, no compasso da batida da música. Há também o duelo do conhecimento, com palavras previamente fornecidas sobre algum tema. O público vota depois de cada apresentação, com palmas para aquele que duelou melhor. Dois jurados também votam – para critério de desempate -, e assim vai indo até a grande final.

Entremeado por pequenos shows de grupos de rap – chamados de pocket shows – o duelo segue animado até meia noite, quando termina o alvará e as pessoas se dispersam. Nem todos voltam pra casa: nesses cinco anos de Duelo, o baixo centro da capital foi revigorado e há inúmeros bares e uma casa noturna para acolher o público ávido por diversão na rua.

“A gente sabe que o duelo trouxe – não por mérito nosso, mas por ter um insight bom na hora e no lugar certo – um olhar completamente diferente pro espaço. As pessoas passaram a enxergar isso aqui como até então não enxergavam, e isso demanda trabalho pra muita gente. Esse é um impacto muito positivo, as pessoas passam a circular aqui, começam a ter outras atividades durante a semana. É a transformação de um espaço que até então estava jogado às traças, e isso partindo das pessoas, dos cidadãos, das cidadãs, e o governo tem que entrar pra fazer valer o que as pessoas estão solicitando para o espaço”, coloca PDR. Ele afirma que o Duelo, por ocupar uma região até então praticamente abandonada, “incomoda muita gente”.

“A ideia é que a máquina funcione dentro dos padrões estabelecidos, e quando algumas pessoas começam a caminhar fora disso começam a ter problemas. Talvez pra Polícia Militar, para a prefeitura de Belo Horizonte, para o governo do estado, é mais fácil que isso aqui fique parado e ocioso, porque não vão precisar mandar gente pra trabalhar aqui, não vão ter que pensar formas de dar condição para essa molecada que está vindo ocupar o viaduto toda sexta-feira”, afirma.

Ele explica que apesar da maioria das pessoas ir até o viaduto para “consumir cultura de qualidade, conhecer gente, se expressar e voltar pra casa numa boa”, há alguns que não conseguem compreender o objetivo do encontro e acabam fazendo dali um ponto de consumo e venda de drogas, inclusive menores de idade. E aí os organizadores do Duelo são firmes: sabem que eles não são o Estado, e batem na porta de todo mundo que tem o dever de atuar na sociedade, inclusive a polícia.

“É constrangedor, mas é necessário. Sabemos que a polícia pode ser truculenta, mas também pode atuar para a educação”, pontua PDR. Fazemos conversas com várias instâncias do poder público. Estamos aqui pra fazer valer o hip hop de Belo Horizonte. Junto com isso vem a responsabilidade de como ocupar o espaço público. A primeira coisa que nos motiva a estar aqui é manter o diálogo dos elementos da cultura, fazer com que as pessoas tenham contato com essa arte, aprendam a respeitar, admirar e, a partir disso, novos artistas vão surgir. As pessoas têm espaço pra mostrar o trabalho delas e isso começa a gerar uma cadeia produtiva muito legal da cultura hip hop. No primeiro momento é por isso que estamos aqui e por isso vamos continuar aqui”, atesta.

PDR explica que a cultura hip hop como um todo, que não é só a música rap, com o Mestre de Cerimônia (MC) e o Disc-jockey (DJ), responsável pelas bases e colagens rítmicas, mas também a dança (break), e a expressão pelo grafite, é um estilo de vida, uma visão de mundo. “O hip hop nos ensina e a gente quer transmitir isso para as pessoas também”, afirma.

Contestação e arte

Apesar de encarar o hip hop como um estilo de vida, PDR não concorda com a visão “salvacionista” do movimento. “A gente pede que as pessoas tenham muito cuidado porque no Brasil convencionou-se que o hip hop é extremamente de cunho social e político. Ele é social sim, é politizado. Mas nasceu pra que as pessoas se divertissem, celebrassem, através da arte, o sentimento delas. Isso tem que ficar claro. Se não, vamos ficar carregando a bandeira de um movimento salvacionista, que tira as pessoas do crime, do vício das drogas... o hip hop não nasceu com essa característica e ele não levanta essa bandeira. Isso acontece naturalmente porque a arte tem o poder de transformar a vida das pessoas”, opina.

Ele destaca o caráter universal do movimento que, apesar de se apropriar de elementos das culturas locais, acontece de forma semelhante no mundo inteiro. “A gente quer que o Duelo de MC’s seja um espaço cada vez mais democrático, onde as pessoas possam se apresentar, os MC’s possam batalhar, os dançarinos possam dançar, as pessoas possam grafitar... isso dando vazão às periferias, mas também às pessoas que não são da periferia, sabe”, coloca.

Mesmo entendendo que o hip hop tem que “botar o dedo na ferida, mexer onde ninguém quer mexer”, ele defende que todos têm o direito de se expressar, e precisam se esforçar pra fazer isso com qualidade artística. “Desde que não vá de encontro aos princípios do hip hop. A gente vai ter dificuldade de apresentar um show sexista, por exemplo. Porque o preconceito não deve fazer parte. A gente acredita que o hip hop pode falar de qualquer assunto, mas defendendo esses princípios: a paz, união, amor e diversão o tempo inteiro”, conclui.

Histórico do Duelo

No dia 18 de agosto de 2007, Belo Horizonte sediou uma etapa de um projeto da Liga de MC’s, do Rio de Janeiro, que organizava a Batalha do Real, em que cada pessoa dava um real e o vencedor levava a bolada. Uma das eliminatórias aconteceu em BH, que já estava havia alguns anos sem espaço certo para a cena hip hop. “Foi uma noite muito bonita e ficamos com vontade de levar a coisa pra rua de novo”, conta PDR.

Uma semana depois, eles estavam na Praça da Estação, fazendo uma batalha de rima improvisada. Chegou um momento em que o grito da garganta não segurava mais e foram atrás de um microfone. “Aconteceu de forma bem natural mesmo, a gente ia pra praça, pra fazer o duelo acontecer, e todo mundo voltar pra casa feliz, a ideia era essa. De alguma forma, passou a ter de novo manifestações da cultura hip hop nas ruas, e no centro, que é um local onde as pessoas das mais diferentes regiões da cidade se encontram”, conta PDR.

A divulgação se dava no boca a boca, e uma noite, no final do ano de 2007, choveu muito e alguém teve a ideia de ir para o viaduto ao lado, que tinha espaço coberto. Assim, sem um planejamento formal, o Duelo ocupou o Viaduto Santa Tereza, no meio da escuridão. Como as demandas foram aumentando, formou-se o Família de Rua, coletivo responsável até hoje pela organização do Duelo, e que faz diversas outras atividades de cultura na cidade.


“A coisa foi tomando forma, e fomos nos identificando cada vez mais com o espaço, e fomos entendendo as outras responsabilidades de ocupar esse local da melhor forma possível. Entendendo que somos cidadãos, o espaço é público e é nosso direito estar aqui e que o poder público tem que fazer valer o direito que a gente tem de ocupar o espaço. E começamos a batalha”, lembra. (Com o Brasil de Fato)

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