Especial de O Brasil de Fato: "A Luta pela terra no Norte de Minas"

Uma pequena cidade no Norte de Minas Gerais expressa os conflitos e contradições da questão da terra no país. Desde que dois escravos encontraram diamantes na região, no final do século 19, as terras e riquezas naturais de Jequitaí são disputadas por fazendeiros, políticos, agricultores e ribeirinhos. Situada no polígono das secas, a cidade banhada pelo rio Jequitaí, um dos afluentes do São Francisco, assistiu no início deste mês de abril a mais uma disputa, desigual e violenta, não só pela terra, mas pelo modelo de desenvolvimento.
Família do acampamento Novo Paraíso: “visitas”
de jagunços e da Polícia Militar - Fotos: Joana Tavares

A denúncia dos movimentos camponeses é que novamente há a presença dessa figura famigerada rondando Jequitaí: os jagunços. Seguranças armados, sem identificação, que ameaçam – e muitas vezes cumprem – garantir a bala o desejo do fazendeiro de não ter sua propriedade ocupada por famílias sem-terra.
A fazenda em questão é a Correntes, que fica logo depois do rio Jequitaí, e possui mais de 15 quilômetros de extensão, com saídas para outras cidades do entorno. São mais de 10 mil hectares de terra, que, atualmente, servem de pasto para algumas cabeças de gado.
Oitenta famílias que vivem há seis anos em barracos de lona em uma fazenda vizinha, transformada no acampamento Novo Paraíso, denunciam que têm visto jagunços – entre 10 e 15 – fortemente armados, rondando tanto as fronteiras internas da Correntes, como os arredores. Na madrugada do dia 10, os acampados receberam a visita da Polícia Militar. Um carro tático móvel do 55º Batalhão, da comarca de Pirapora, chegou com as sirenes desligadas, armamentos longos, como fuzis, e, do lado de fora do acampamento, ameaçou prender as lideranças e deixou claro para as famílias que “qualquer tipo de tentativa de invasão seria frustrada”.
Para denunciar as ameaças e pedir providência aos órgãos públicos em relação à desapropriação da fazenda – diagnosticada como improdutiva desde 2003 – os movimentos sociais da Via Campesina solicitaram a realização de uma audiência pública.
“Não queremos guerra”
Estava marcada para as 14h do dia 12 de abril, e já estavam presentes representantes do Instituto de Terras (Iter), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos, dos gabinetes dos deputados Durval Ângelo, Rogério Correia e Padre João, vereadores de Jequitaí, sindicalistas, agricultores e atingidos por barragens quando uma confusão acirrou os ânimos e teve que ser levada à delegacia.
Um homem, identificado como Franklin Carlos Dias, abordou a dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Marili Zacarias e começou a tirar fotos do acampamento montado na praça. Algumas pessoas começaram a segui-lo, e foram impedidas pela Polícia Militar, que o levou a delegacia e registrou a ocorrência.
“Estava tirando fotos da praça porque estava com muita gente, quando começaram a me perseguir. Não conhecia ninguém dali. Na verdade, acho uma falta de ética montar barracas em lugar público, impedindo o direito das outras pessoas de ir e vir”, alegou Franklin.
Mas Marili revela que o teor da conversa foi outro. “Eu nunca tinha visto esse rapaz, mas ele me chamou pelo nome. Disse que vinha a mando do fazendeiro, Toninho, e que já tinha coordenado um grupo de mais de 50 jagunços. Disse que ganhava R$ 15 mil por cada morto. O recado do Toninho era para não ocupar. Se não, ia ter morte”, afirmou.
Apesar do atraso, a audiência foi realizada, com parte do efetivo policial acompanhando à distância, além de dois oficiais de inteligência – que alegavam trabalhar para uma rede de TV. Sindicalistas e assessores parlamentares manifestaram seu apoio ao direito dos acampados pela terra, e representantes dos órgãos públicos frisaram que havia um esforço para a aquisição da fazenda Correntes para fins de reforma agrária.
O representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Rubens Giaquinto, colocou que o próprio ministro Pepe Vargas pediu “prioridade total” para a resolução do conflito na região. “Já temos um exemplo no Triângulo Mineiro e não queremos que mais nenhum companheiro ou companheira dos movimentos de luta pela terra seja tombado pela luta de direito a terra e à vida”, afirmou.
Fazenda Correntes
A presidência da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa solicitou uma vistoria da fazenda Correntes, para investigar a denúncia da presença de seguranças particulares armados. A PM acompanhou a vistoria, realizada no dia 12, com dois carros oficiais, autorizada pelo arrendatário e gerente da Correntes, Paulo Jesus Pinto.
“Nada [das denúncias] é verdade. Somos três funcionários aqui, mais um guarda na usina. Se fosse verdade que tinha seguranças armados, não pediria socorro à PM. Nós que nos sentimos ameaçados, pois vimos três elementos no mato e isso nos preocupou, porque tem um boato que eles vão invadir a fazenda. Fazemos a vigilância aqui só com a caminhonete e telefone na mão. Não temos nem um canivete”, contou Paulo logo na chegada da delegação à fazenda.
Ele autorizou a busca por todos os cômodos da casa-grande da fazenda. Com um pátio central elegante, a casa possui muitos quartos, mas poucos com sinal de uso. No quarto contíguo àquele apresentado como sendo do proprietário, Antonio Rezende Penido, foi encontrada uma sacola contendo oito brevês, semelhantes ao utilizado pelas Forças Armadas. Quatro tinham a estampa do Brasil e os outros quatro um símbolo semelhante ao de forças de aviação.
Antecedentes
“Gostaria que o senhor pensasse muito bem antes de responder a esta pergunta, pois sua resposta constará no boletim de ocorrência: existe alguma arma aqui? Sabemos dos antecedentes da fazenda Correntes...”, inquiriu o sargento Luiz a Paulo Jesus Pinto, que se identificava como “amigo do dono e arrendatário”. Apesar de não produzir nada, Paulo alega que pretende ganhar dinheiro – “e não é pouco dinheiro não” – com a produção de arroz irrigado, soja e milho. Natural de Osório, no Rio Grande do Sul, ele diz cuidar da fazenda desde janeiro deste ano, quando começou a “confusão”.
Em 2004, a Polícia Federal apreendeu diversas armas de fato em posse de nove seguranças da fazenda, quatro deles ex-policiais militares. Havia inclusive 26 cartuchos explosivos, que poderiam atuar como dinamite.
No mês de abril de 2008, 500 pessoas ligadas a movimentos da Via Campesina ocuparam a fazenda. Além de reivindicarem a desapropriação da terra para assentamento das famílias, protestavam contra o Projeto Jequitaí, que prevê a construção de uma barragem de 120 mil m² e um perímetro irrigado de 350 mil m² na área, atingindo cerca de mil famílias e voltada para o beneficiamento do agronegócio.
Seis dos oito brevês foram recolhidos pela PM – com a anuência de Paulo – e serão anexados como peça do inquérito a ser encaminhado para a Polícia Civil. “Para nós da Comissão de Direitos Humanos, esses brevês são indícios de formação de milícia e isso deve ser investigado pela Polícia Federal”, afirmou Fábio Garrido, assessor da presidência da Comissão presente na vistoria.
Projeto Jequitaí
Segundo informações da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), o projeto Jequitaí prevê a construção de duas barragens, a formação de um reservatório de água, geração de energia e aproveitamento hidroagrícola de cerca de 30 mil hectares irrigados, para a produção de fruticultura.
A Companhia terceirizou para a Ruralminas a elaboração do plano de negociação do projeto, que o quarteirizou para a Fundação Renato Azeredo, em um contrato de R$ 11.899.808. Em uma apresentação questionada pelos movimentos sociais, o plano teria sido aprovado. “A Codevasf e a Ruralminas vêm mantendo contato com as entidades representativas dos beneficiários com a construção da barragem, dando ampla divulgação e discutindo a aplicação do plano de negociação elaborado e amplamente discutido com as comunidades. Em pleno cumprimento dos requisitos legais, a Codevasf e a Ruralminas farão o reassentamento e remanejamento de todos os atingidos pelo empreendimento”, informa a Companhia, em nota.
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) questiona a forma de elaboração do plano, que não levou em consideração o movimento como o interlocutor oficial para projetos de barragens, conforme definido em decreto presidencial. Moisés Borges, da coordenação do MAB, coloca que é necessário que se faça um novo cadastro dos atingidos com a presença do movimento, que calcula em mais de mil pessoas os atingidos pelas obras, quase quatro vezes mais dos que os 275 indicados pelo estudo da fundação.
Ele explica que as barragens poderiam ser utilizadas para melhorar as condições da pequena agricultura, e se transformar em um projeto modelo de reassentamento. “No entanto, o que está colocado é uma obra que reproduz a lógica do modelo energético: uma barragem voltada para a contenção de água para projetos de irrigação do agronegócio e outra para a geração de energia para o polo minerador e metalúrgico do norte do estado”, avalia.
MAB calcula que mais de mil pessoas serão afetadas
pelas obras e não apenas as 275 indicadas

Ele aponta que a fazenda Correntes,
localizada próximo à região de construção das obras, poderia ser uma área ideal tanto para o assentamento das famílias sem-terra como um reassentamento dos atingidos, que poderiam se beneficiar com a construção das barragens, caso elas fossem voltadas para a geração de energia e irrigação para a pequena agricultura.
Audiências
No dia 16, foram realizadas duas audiências para discutir a questão da fazenda Correntes e do modelo de desenvolvimento de Jequitaí. A primeira terminou com o comprometimento do Incra em acompanhar o processo de desapropriação da fazenda Correntes na Justiça. A segunda, na sede da Codevasf em Montes Claros, terminou com impasse. A Companhia se negou a discutir o acordo de negociação, denunciado pelos movimentos como “imposto goela abaixo”. O Incra fará novo cadastramento dos atingidos.
A fazenda Correntes foi indicada como uma das possibilidades prioritárias para o reassentamento das famílias. A Companhia, que havia solicitado a área para ser reserva do projeto Jequitaí, alegou que a fazenda está muito endividada e que seu custo seria muito alto para a desapropriação.

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