ELEIÇÕES NA FRANÇA

A audácia ou o beco sem saída
Algumas semanas após as eleições de 6 de maio, Sarkosy deverá participar de uma cúpula do G20. E, de cara, ele deverá aceitar, renegociar ou recusar um tratado europeu que aprofundará as políticas de austeridade. Sua escolha dependerá da orientação econômica e social da França, mas também de toda a construção européia
 Serge Halimi


Ainda que a eleição francesa provoque uma mudança de presidente, as questões decisivas do período iniciado em 2007 serão rompidas? A alternância política constituiria um alívio para os franceses, pois, para além dos defeitos mais notórios do presidente que parte – sua onipresença, seu exibicionismo, sua capacidade de dizer tudo e nada, a fascinação que ele tem pelos ricos, quase igual à sua disposição em transformar os desempregados, os imigrantes, os muçulmanos ou os funcionários públicos em bodes expiatórios de todas as cóleras –, os cinco anos corridos marcaram um retrocesso da democracia política e da soberania popular.
Depois do plebiscito de maio de 2005, os candidatos ao Eliseu dos dois principais partidos representados no Parlamento ignoraram a oposição de uma maioria de franceses a uma construção europeia da qual todos os erros de concepção se revelam hoje. A votação do plebiscito foi, no entanto, traduzida por um voto definitivo, ao final de um debate nacional com melhor qualidade do que a atual campanha eleitoral. E a presidência de Nicolas Sarkozy, que devia marcar o retorno do voluntarismo na política, se encerra com um encadeamento de declarações desconcertantes. Enquanto o conjunto dos candidatos de esquerda culpa os bancos, François Baroin, ministro francês da Economia, defende que “atacar as finanças é tão idiota quanto dizer ‘sou contra a chuva’, ‘sou contra o frio’ ou ‘sou contra a neblina’”. Por sua vez, o primeiro-ministro François Fillon recomenda ao candidato socialista François Hollande “submeter seu programa eleitoral à Standard & Poor’s”.1
A subordinação dos círculos dirigentes franceses à “democracia conforme o mercado”, credo afirmado por uma direita alemã cada vez mais arrogante, corrói também a soberania popular. O surgimento dessa hipótese está no centro da eleição em andamento. E faz os termos do debate europeu serem colocados sem rodeios. Ninguém ignora que os programas de austeridade colocados em ação com fúria nos últimos dois anos não trouxeram – e não trarão – nenhuma melhoria aos problemas de endividamento que pretendem resolver. Uma estratégia de esquerda que não coloque em questão esse garrote financeiro está por consequência condenada desde o princípio. E o ambiente político europeu impede de imaginar que isso possa ser conquistado em combate.
No momento atual, a embolia geral é contida por uma torrente de dinheiro que o instituto de emissão deposita a preço baixo nos bancos privados, com a condição de que estes reemprestem mais caro para os Estados. Mas esse descanso depende apenas da boa vontade do Banco Central Europeu (BCE), reforçado por uma “independência” que os tratados imprudentemente consagraram. A longo prazo, a maioria dos países-membros da União se comprometeram, de acordo com as exigências alemãs docilmente consentidas por Paris, a endurecer suas políticas de rigor e a submeter os eventuais infratores a um mecanismo de sanção draconiano, o Tratado sobre a Estabilidade, a Coordenação e a Governança (TSCG), em curso de ratificação.
O castigo infligido à Grécia ameaça agora a Espanha, convocada a reduzir em um terço seu déficit orçamentário, quando sua taxa de desemprego já atinge 22,8%. Portugal não fica atrás. Deve amputar suas despesas públicas, ao mesmo tempo que a taxa de lucro de seus empréstimos explode (14% em março) e o país afunda na recessão (3% de desaceleração em 2011). Infligir um aperto orçamentário a Estados que caminham para o desemprego em massa não é um caso inédito − tal foi a grande receita econômica e social dos anos 1930 na França... Os socialistas explicavam então: “A deflação agrava a crise, ela diminui a produção e diminui o rendimento dos impostos”.2
A estupidez das políticas atuais só é desconcertante então para quem ainda imagina que elas tenham a vocação de servir ao interesse geral, e não a uma oligarquia rentável pendurada nos controladores do Estado. Se as finanças têm um rosto, é bem esse.3 Nomear esse inimigo permitiria uma melhor mobilização contra ele.
Em caso de alternância política na França, questionar o TSCG (ou outras políticas de austeridade do mesmo tipo) deverá constituir uma prioridade absoluta do novo presidente, quem quer que seja. O sucesso ou o fracasso dessa empreitada determinará o resto: educação, serviços públicos, justiça fiscal, emprego. Hollande gostaria de dissociar o mecanismo de solidariedade europeia, que ele defende, da terapia de choque liberal, que ele contesta. O socialista se comprometeu a “renegociar” o TSCG, com a esperança de acrescentar a ele “um pouco de crescimento e emprego” junto com projetos industriais em escala continental.
“Nenhuma política de esquerda é possível no contexto desses tratados”, estima por outro lado Jean-Luc Mélenchon. Logicamente, o candidato da Frente de Esquerda se opõe ao TSCG, assim como ao Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), que prevê uma assistência financeira aos países em perigo que tiverem previamente aceitado medidas draconianas de equilíbrio orçamentário. O candidato ecologista e os postulantes trotskistas também conduzem uma campanha por uma “auditoria europeia das dívidas públicas”, para talvez acusá-las de ilegitimidade argumentando que as baixas de impostos desses últimos vinte anos e os lucros encaminhados aos credores explicam o essencial de seu nível atual.

A “flexibilização” de 1997
Opondo-se a uma renegociação dos tratados, a maior parte dos Estados europeus, a Alemanha em primeiro lugar, não imagina nada do gênero. E muito menos emprestar somas importantes a Estados em dificuldade financeira sem que eles tenham dado garantias de sua “boa” gestão. Quer dizer, aceitado ao mesmo tempo novas privatizações e a revisão de partes importantes de sua proteção social (aposentadorias, auxílio-desemprego, salário mínimo etc.). “Os europeus não são mais ricos o suficiente para pagar todo mundo para não trabalhar”, resumiu no dia 24 de fevereiro passado Mario Draghi, presidente do BCE, numa entrevista ao Wall Street Journal. O antigo vice-presidente da Goldman Sachs acrescentou que uma “boa” austeridade necessitaria ao mesmo tempo uma redução dos impostos (o que nenhum candidato francês propõe, nem mesmo Sarkozy) e das despesas públicas.
É o mesmo que dizer que um presidente de esquerda enfrentaria tanto a oposição da maioria dos governos da União, majoritariamente conservadores, como a do BCE, sem esquecer a Comissão Europeia presidida por José Manuel Barroso. É sem dúvida deliberadamente que os primeiros-ministros britânico, polonês e italiano, assim como a chanceler alemã, recusaram-se a receber o favorito francês nas pesquisas, considerado menos cômodo que o atual presidente.
“Não somos a favor de uma renegociação”, já indicou Jan Kees de Jager, ministro holandês das Finanças. “Por outro lado, se Hollande quiser fazer mais reformas, então estaremos a seu lado, que se trate da liberalização dos serviços ou de reformas do mercado de trabalho.” Em suma, o apoio da Holanda será dado a qualquer presidente francês de esquerda que colocar em ação uma política ainda mais liberal que a de Sarkozy.
Angela Merkel não faz nenhum mistério sobre sua inclinação partidária: ela se declarou disposta a participar dos encontros da direita francesa. Os socialistas alemães mostram menos entusiasmo com relação a seus camaradas do outro lado do Reno. O presidente do partido, Sigmar Gabriel, se declarou solidário, mas outro dirigente, Peer Steinbrück, que espera também suceder a chanceler daqui a dezoito meses, julgou “ingênuo” o comprometimento de Hollande em “renegociar mais uma vez todos esses acordos [europeus]”. Ele antecipa uma inversão do candidato francês: “Se ele for eleito, sua política poderia concretamente diferir do que ele está dizendo”.4
Não sabemos se tal hipótese deve ser excluída. Já em 1997 os socialistas franceses tinham prometido, antes das eleições legislativas, renegociar um pacto de estabilidade europeu assinado em Amsterdã – uma “concessão feita absurdamente ao governo alemão”, estimava Lionel Jospin. Uma vez no poder, a esquerda francesa não obteve nada além do acréscimo dos termos “e de crescimento” ao título do “pacto de estabilidade”.
Pierre Moscovici, atual diretor da campanha de Hollande, voltou em 2003 a essa pirueta semântica. Ao relê-lo, é difícil não pensar na situação que poderia ocorrer em maio próximo: “O Tratado de Amsterdã tinha sido negociado – muito mal – antes de nossa chegada às responsabilidades. Ele comportava inúmeros defeitos – primeiramente um conteúdo social muito insuficiente. [...] O novo governo teria podido legitimamente não aprová-lo [...], ou ao menos pedir sua renegociação. Não foi nossa escolha final [Moscovici era então ministro das Relações Europeias], pois estávamos confrontados, com Jacques Chirac no Eliseu, à ameaça de uma tripla crise. Crise franco-alemã, pois um recuo de nossa parte poderia complicar de início nossa relação com esse parceiro essencial [...]. Crise com os mercados financeiros, cujos operadores desejavam a adoção desse tratado. [...] Finalmente, crise de coabitação. [...] Lionel Jospin escolheu, com justeza, deslocar o terreno, procurando ao mesmo tempo uma flexibilização e uma saída por cima. Quer dizer, obtendo, pelo preço de seu consentimento no Tratado de Amsterdã, a primeira resolução de um Conselho Europeu consagrado ao crescimento e ao emprego”.5
Na hipótese de uma vitória presidencial, depois parlamentar, da esquerda em maio-junho próximos, dois elementos difeririam do quadro pintado aqui. De um lado, o Poder Executivo francês não estaria mais dividido como há quinze anos; mas, por outro lado, o equilíbrio político da Europa, que pendia para a centro-esquerda em 1997, inclina-se agora fortemente para a direita. Isso posto, até mesmo um governo tão conservador quanto o do primeiro-ministro espanhol Mariano Rajoy se preocupou com a cura da austeridade perpétua que lhe reservam os governantes alemães. No último dia 2 de março, ele revelou sua “decisão soberana” de não aceitar a camisa de força orçamentária europeia.
Quase no mesmo momento, uma dúzia de outros países, entre os quais a Itália, o Reino Unido e a Polônia, reclamou uma reorientação da política econômica tramada pelo conjunto germano-francês. Hollande poderia ficar feliz com isso. Ele espera que sua eventual eleição irá balançar as correlações de forças continentais, sem que ele tenha de engajar uma prova de força – o que ele manifestamente repugna – com diversos governos europeus, o BCE e a Comissão de Bruxelas.
Só um porém: a reorientação desejada pelos países liberais não tem nada a ver com a que ele mesmo recomenda. A palavra “crescimento” significa para uns a adoção de políticas de oferta thatcherianas (redução dos impostos e desregulamentações sociais e ambientais), para outros um pequeno pacote de investimentos públicos (educação, pesquisa, infraestrutura). O equívoco não será mantido indefinidamente. Bem rápido, será necessário enfrentar a “desobediência europeia” que recomendam Mélenchon e outras forças de esquerda. Ou então prosseguir sem esperanças no caminho já iniciado.
Para além do que os distingue – em matéria de justiça fiscal, por exemplo –, Sarkozy e Hollande apoiaram os mesmos tratados europeus, de Maastricht a Lisboa. Ambos endossaram objetivos draconianos de redução de déficits públicos (3% do PIB em 2013, 0% em 2016 ou em 2017). Os dois recusam o protecionismo. Eles esperam tudo do crescimento. Defendem orientações de política externa e defesa idênticas, agora que até a reintegração pela França do comando integrado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) não é mais questionada pelos socialistas franceses.
Chegou a hora de romper com o conjunto desses postulados. Mudar de presidente é a condição para isso. Mas nem a história da esquerda no poder nem o desenrolar da campanha atual nos autorizam a imaginar que isso poderia ser suficiente.

Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).

Ilustração: Manohead

1 Respectivamente RTL, 22 jan. 2012, e Le Journal du Dimanche, Paris, 15 jan. 2012.
2 Preâmbulo da proposta de lei orçamentária do grupo socialista para 1933.
3 Ler o dossiê “Le gouvernement des banques” [O governo dos bancos], Le Monde Diplomatique, jun. 2010.
4 AFP, 15 fev. 2012.
5 Pierre Moscovici, Un an après [Um ano depois], Flammarion, Paris, 2003, p.90-91.
 

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