(Criança com cólera é tratada em posto de saúde em Carrefour, nos arredores da capital haitiana Porto Príncipe) 
                
ONU introduz epidemia de cólera no Haiti
O fato de a condição endêmica da cólera não ser possível “sem deficiências simultâneas do sistema de saneamento” não elide a responsabilidade da ONU. Pelo contrário, torna ainda mais grave sua responsabilidade por negligenciar as condições sanitárias de suas instalações em um país com infraestrutura fragilizada

 Cristine Koehler Zanella, Maria Carolina Silveira Beraldo


A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie falou de forma incisiva, em uma palestra no ano de 2009, sobre “os perigos de uma única história”. Para explicar ao público a qual situação ela se referia com aquela frase, contou uma história pessoal: um dia, ao visitar a família de um menino que auxiliava em pequenos afazeres em casa e sobre o qual ouvia dizer (sempre e unicamente) que sua família era muito pobre, se surpreendeu ao ver que os pais do garoto faziam lindos cestos de ráfia. Para ela, a família do menino era pobre, e a pobreza era a única história daquela gente: “Tudo que eu tinha ouvido sobre eles é que eram pobres; assim, havia se tornado impossível para mim vê-los como alguma coisa além de pobres”.

 Chimamanda também contou sua experiência ao chegar aos Estados Unidos para estudos universitários e deparar com uma colega de quarto, que, na ocasião, ficara chocada ao ouvi-la falando inglês fluentemente, denunciando seu desconhecimento sobre a adoção do idioma como língua oficial em seu país natal. Na mesma linha, contou sobre a decepção da amiga ao solicitar que lhe apresentasse suas músicas tribais e obter como resposta um ecoar de Mariah Carey no aparelho de som. Em comum, todos esses casos unem-se no reducionismo marcado pelo que é repetidamente contado de forma uníssona: existências plurais são reduzidas a uma única história.

Chimamanda analisa que as histórias são definidas pelas estruturas de poder do mundo, algo que ela traduz, usando uma palavra de uma tribo africana, como nkali, que pode ser compreendido como “ser maior que o outro”. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas e a capacidade de fazer de uma história a história definitiva: tudo depende do nkali. Desse modo, quem monta a história definitiva – a história única que se repete – é aquele que é maior que o outro.

Talvez poucos países tenham uma história tão sujeita às forças do nkali quanto o Haiti. Não é difícil resumi-la como “uma grande catástrofe”. São ignoradas as conquistas de independência e liberdade (quase nada se fala sobre o Haiti ter feito a segunda independência das Américas e ter sido o primeiro país a abolir a escravidão),a resistência física e a efervescência cultural e artística de um povo que cria obras tão vibrantes quanto sua vontade de existir apesar das adversidades. Em lugar delas, cria-se um monólogo que reforça enredos de violência, terremotos, enchentes, ditaduras e pobreza, formando-se, assim, a única – e definitiva − história haitiana.

 Está em pleno curso, hoje, a narrativa de mais uma passagem dessa longa história. Trata-se de uma grande epidemia de cólera, doença desconhecida pelos haitianos há praticamente cem anos e pela qual se autoeximem das consequências os responsáveis, alegando que a catástrofe só está ocorrendo em função de uma “confluência de circunstâncias”. Esse capítulo da história do Haiti teve início há mais de um ano.1

O primeiro caso em cem anos

Em outubro de 2010, desencadeou-se uma epidemia de cólera no Haiti. A reconstrução dos fatos remonta a um primeiro registro de adoecimento e hospitalização em Mirebalais, região a montante no rio Artibonite, no dia 17 desse mês. O primeiro caso na região costeira, no delta do rio Artibonite, ocorreu em 20 de outubro do mesmo ano. Dois dias depois, o Laboratório Nacional de Saúde Pública do Haiti confirmou oficialmente o primeiro caso de cólera no país em aproximadamente cem anos. Também nesse dia o surto da doença foi amplamente detectado nas áreas costeiras.

 À primeira leitura, os registros já permitiam inferir que a doença estava se alastrando ao longo do rio Artibonite.
As primeiras hipóteses sobre a origem da bactéria contemplavam a migração de elementos patogênicos que teriam chegado ao Haiti em razão de falhas tectônicas causadas pelo terremoto de janeiro de 2010, a mutação de um organismo já presente no território e a introdução do vibrião por um soldado da missão de paz da ONU, cujas fezes, contaminadas, teriam sido lançadas em águas haitianas sem tratamento.
Em dezembro de 2010, o primeiro relatório sobre a origem da cólera no Haiti descartou o terremoto ou mutações naturais como possíveis causas do surto.

 O epidemiologista Renaud Piarroux afirmou que “o foco infeccioso partiu do campo dos nepaleses”; “o ponto de origem está precisamente localizado” e “a explicação mais lógica é a introdução maciça de material fecal no curso do rio Artibonite de uma só vez”.
Resistindo em assumir a responsabilidade pela introdução da doença no país caribenho, apenas em janeiro de 2011 o secretário-geral da ONU nomeou um painel de quatro especialistas encarregados de “investigar e procurar determinar a origem do surto de cólera”. 

No relatório, apresentado em maio, os especialistas rechaçaram as “causas naturais” do surto e sustentaram que “a evidência admite plenamente a conclusão de que a origem da cólera no Haiti é resultado da contaminação do rio Meye, afluente do Artibonite, com uma variedade patogênica comum no sul da Ásia do tipo Vibrio cholerae, em decorrência de atividade humana”.
Ao mesmo tempo que todas as evidências apontavam para uma conclusão indicativa das tropas nepalesas da ONU como fonte da contaminação, o painel, de forma surpreendente pois contraditória em relação a tudo que acabara de constatar, evitou atribuir responsabilidade à ONU, concluindo que “o surto de cólera no Haiti foi causado pelaconfluência de circunstâncias descritas anteriormente, e não pela culpa ou pela deliberada ação de um grupo ou de um indivíduo” (grifo nosso). A partir de tal relatório, a ONU aferrou-se à teoria da “confluência de circunstâncias” para eximir-se de qualquer responsabilidade direta – e esta passou a ser a única história sobre a cólera no Haiti.
Entretanto, o próprio relatório já fornecia todos os elementos para o estabelecimento do nexo causal entre a origem da cólera e a contaminação a partir dos dejetos lançados pela base da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) em Mirebalais, após a chegada dos soldados nepaleses. São os próprios especialistas que, no documento:
a.confirmam: i) a origem humana da contaminação (“bactérias introduzidas no Haiti como resultado da atividade humana”); ii) a zona geográfica de contaminação e a proveniência da bactéria (“contaminação do rio Meye, afluente do Artibonite, com uma variedade patogênica comum no sul da Ásia do tipo Vibrio cholerae”); e iii) a coerência entre os casos confirmados e a origem da propagação da contaminação (“o calendário é consistente com a evidência epidemiológica que indica que o surto teve origem em Mirebalais [...] o transporte pelo rio foi a rota de transmissão para a cólera espalhar-se das montanhas de Mirebalais para o delta do Artibonite”);
b.denunciam as condições sanitárias deficientes do acampamento da Minustah em Mirebalais ao enunciar que “não foram suficientes para prevenir a contaminação do sistema tributário do Meye com resíduos fecais humanos”;
c.confirmam que os dados de análise molecular indicam a identidade genética das cepas encontradas no Haiti, o que fornece uma ponte para a detecção da origem do surto, e a semelhança com as cepas de Vibrio cholerae O1 do sul da Ásia;
d.alertam para o risco de transmissão de agentes patogênicos pelo pessoal mobilizado pela ONU, advertem para a importância do tratamento profilático do pessoal da organização proveniente de regiões onde a cólera é endêmica e recomendam o tratamento dos dejetos fecais de todas as instalações da ONU.
 A culpa seria da vítima
O fato de a condição endêmica da cólera não ser possível “sem deficiências simultâneas do sistema de adução de água, saneamento e assistência médica”, como afirmam os especialistas, não elide a responsabilidade da ONU. Pelo contrário, torna ainda mais grave sua responsabilidade por negligenciar as condições sanitárias de suas instalações em um país com infraestrutura já fragilizada e no qual o povo enfrenta uma luta permanente pela sobrevivência. Raciocinar de outra forma é assumir a postura indigna e perversa – mas tão comum entre quem tem o poder de fazer a história − de culpar as vítimas por não conseguirem resistir aos males que as afligem.

Enquanto o painel produzia o relatório encomendado pela ONU, o especialista independente Michel Forst comunicava, em relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, a onda de violência que vitimava sacerdotes praticantes do vodu. Segundo o informe, ao menos 45 pessoas tinham sido alvo de linchamentos, acusadas de espalhar a enfermidade, numa clara relação entre o desespero pela impotência diante dos casos de contaminação e morte, a cultura local e a virulência da epidemia. No entanto, Forst, relator exclusivo para o Conselho de Direitos Humanos, jamais mencionou a origem da cólera, pois – como o próprio afirma – seu mandato não o permite: “Meu mandato não diz respeito à Minustah”.
O posicionamento reflete que o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas não toma conhecimento de eventuais ações ou omissões que agridem os direitos humanos decorrentes das atividades da ONU no Haiti. Essa posição, além de tornar invisível o problema e, por consequência, produzir sua inexistência – em termo emprestado do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos −, fechou o caminho para uma demanda a partir do próprio sistema onusiano, situação inaceitável quando a própria organização é promotora e depositária fiel dos principais documentos internacionais relativos à proteção dos direitos humanos.

Em julho de 2011, Piarroux liderou um grupo de cientistas que apresentou novos argumentos, afirmando de forma contundente que a introdução do vibrião da cólera no Haiti se deu por meio de soldados integrantes da Minustah. Relacionando o surto de cólera registrado na capital nepalesa em 23 de setembro de 2010, a chegada de soldados daí provenientes ao campo da Minustah de Artibonite e o início da epidemia no Haiti, o estudo afirma que existe uma correlação espaçotemporal exata entre a chegada das tropas nepalesas originárias de uma região onde a cólera é endêmica e os primeiros casos verificados no rio Meye poucos dias depois.

Mesmo com todas as evidências reiteradamente apontando para a ONU, esta permaneceu resistente quanto à assunção de suas responsabilidades e, em julho de 2011, divulgou um comunicado de imprensa em que, em vez de se desculpar oficialmente com os povos haitiano e dominicano e propor uma reorganização de toda a Missão de Paz visando ao enfrentamento da epidemia, manteve-se aferrada à defesa da tese da “confluência de circunstâncias”.

Em agosto de 2011, novo e mais aprofundado estudo de análise molecular aperfeiçoou significativamente as conclusões sobre a origem do vibrião colérico. Utilizando o método whole-genome sequence typing, um grupo de quinze cientistas concluiu que “os resultados do estudo são consistentes com a identificação do Nepal como origem do surto haitiano”.
No mesmo mês, os pesquisadores Jake Johnston e Keane Bhatt demonstraram como a reiterada negligência da Minustah contribui(u) para a rápida disseminação da doença, para a inadequada alocação de recursos e para o fracasso no desenho de projetos de longo prazo para o enfrentamento da epidemia.

A história aqui contada traz fatos que demonstram a responsabilidade da ONU pela introdução da cólera no continente americano via soldados nepaleses que, a partir da base de Mirebalais, contaminaram com dejetos fecais as águas do rio Artibonite, expondo a população ao vibrião que provocou contaminação em cadeia, adoecimento e morte de dezenas de milhares de pessoas infectadas pela bactéria, especialmente no Haiti e na República Dominicana, mas também em outros países do continente (como Estados Unidos, México, Venezuela e Chile).
 Criação de uma história única
Essa história de responsabilidade da ONU pela catástrofe da cólera no Haiti vem sendo escondida pela força dos atores que controlam não só como os fatos são contados, mas se, quando, quantas vezes e quais fatos são ressaltados. É o processo que Chimamanda descreveu que está se operando em relação à tese da “confluência de circunstâncias” sustentada pela ONU: “Então é assim que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que ele se tornará”. E eis a história do povo haitiano vista da perspectiva do capítulo dos tempos de cólera: um país pobre, de pessoas miseráveis, com infraestrutura praticamente inexistente e com um sistema de saúde sofrível, tudo “confluindo”, portanto, para que a contaminação atingisse os níveis de letalidade que hoje contabilizam − em números oficiais e, portanto, mínimos – mais de 500 mil pessoas contaminadas (que representam aproximadamente 5% da população do país) e 7 mil mortos.
A história única não conta que antes da disseminação da cólera houve a introdução da bactéria em solo haitiano, sem o que o surto não existiria. Daí a propositura de duas demandas. Uma delas, proposta pelo Instituto para Democracia e Justiça no Haiti, foi dirigida à ONU, exigindo desta reparação às vítimas e/ou seus familiares; a outra, consistente em uma denúncia elaborada pela Faculdade de Direito de Santa Maria, foi encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e solicita, sem prejuízo da reparação às vítimas, que a ONU se desculpe pela introdução da cólera e das consequências daí decorrentes, repare economicamente os países afetados, crie novos centros de tratamento e prevenção da doença no Haiti e arrecade um fundo de, no mínimo, US$ 500 milhões para a estruturação de um sistema público de saúde no país.
Espera-se que a Comissão − e, se necessário, a Corte Interamericana de Direitos Humanos − tenha a coragem de agir para assegurar a reparação a Estados e pessoas, reafirmando, assim, a vigência dos tratados internacionais de direitos humanos em solo americano e a responsabilidade que emerge do dano causado por qualquer sujeito internacional. Eximir-se dessa tarefa é omitir-se ante uma injustiça que perpetuará um assalto à dignidade do povo haitiano, como as palavras de alerta de Chimamanda permitem inferir de forma conclusiva: “A consequência de existir uma única história é esta: ela rouba a dignidade das pessoas. Torna difícil o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada. Enfatiza como somos diferentes, em vez de como somos semelhantes”.

(*) Cristine Koehler Zanella é professora universitária, vice-coordenadora do Projeto Brasil-Haiti e doutoranda em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS

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