Parafuso legal


                  Carlos Lúcio Gontijo
            Normalmente, nossos folclores político, literário e musical acabam por nos mostrar a face psicológica e cultural da sociedade. Há no povo brasileiro uma forte determinação de driblar as leis. Até aqueles que têm o comando da economia e do capital nacional se acercam de assessores para estudar possíveis brechas, então chamadas legais, a fim de se beneficiar em seus negócios.

                Há anos, assistimos ao governo brasileiro se utilizando das medidas provisórias, admitidas pela Constituição em caso de relevância e urgência. Mas, pelo visto, nunca vivemos tantas relevâncias nem tamanhas situações urgentíssimas, com o governo exagerando no uso do instrumento das medidas provisórias, visualizado por ele como tábua de salvação capaz de lhe proporcionar algum espaço de governabilidade, diante de um Congresso dividido, onde a base aliada age como se tivesse licença para fazer do fisiologismo político uma moeda de troca. Ou seja, no final das contas, o governo não pode contar nem com a oposição nem com os próprios aliados, criando a imagem surrealista em que o rabo abana o cachorro. 
                Há no folclore político mineiro um caso que bem situa nosso menosprezo, ou mesmo um inegável relacionamento de disputa com as leis. Contam que Raul Soares, à época presidente estadual de Minas Gerais (1922-1924 – morreu no exercício da função) e que foi o único civil a ocupar o cargo de ministro da Marinha no Brasil, viu-se obrigado a chamar até a capital mineira um de seus compadres, correligionário e coronel político, para uma acanhada advertência.
                Olha compadre, dizia de forma estudada o governador, você está excedendo-se na região. Chegam-me constantes reclamações e vamos acabar usando os rigores da lei contra você, a fim de não prejudicar nossa imagem diante das pessoas e demais autoridades do Estado e do país.
                Sem pestanejar nem vacilar, o simplório coronel do interior saiu-nos com essa pérola: “Uai, compadre Raul, usar a lei bem que você pode. Mas lei pra nós não é prego fixo na parede como você imagina na sua boa intenção de homem público. Lei pra nós é um parafuso: a gente torce pra lá, pra cá... como bem entender”. Despediu-se, foi embora e deixou Raul Soares perplexo com aquela maneira singela e até mesmo filosófica, mas irrefutável, de expor a realidade cultural e psicológica do relacionamento de nossa sociedade com as leis, sempre mais dependentes do senso comum (e moral) dos cidadãos que da capacidade e competência do legislador.
                Dessa verdade cultural não fogem as pessoas mais humildes, as autoridades constituídas e presidentes. Pode-se dizer que a descoberta da ilegalidade nada mais é que pôr às claras a tentativa frustrada da tradição de se procurarem lacunas nos textos legais. Não foi à toa que a nossa Constituição desceu a níveis descritivos e terminou ostentando toda aquela extensão, pois sabiam os constituintes que a nossa sociedade é mestre em sair pela tangente e ludibriar títulos, artigos, parágrafos, incisos etc.. Todavia, quando pegos com a boca na botija, em plena prática de corrupção ou do famigerado levar vantagem em tudo, posamo-nos como inimputáveis e fazemos cara de menor de idade ou simplesmente não responsáveis por nossos atos e até desconhecedores da lei que ousamos desparafusar e torcer (e distorcer) segundo o nosso inconfessável desejo.
          Carlos Lúcio Gontijo
          Poeta, escritor e jornalista

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