Decisões recentes põem em dúvida o garantismo penal do Supremo



Marcelo Semer - 18/04/2011

Duas decisões recentes do STF arranham a pretendida reputação de corte garantista, que seus ministros vinham amealhando em casos penais de grande repercussão.
Em passado recente, o Supremo foi capaz de considerar inconstitucional a proibição de progressão na antiga Lei dos Crimes Hediondos, estabelecer a liberdade provisória como regra (mesmo após a condenação) e entender possível a aplicação de penas restritivas de direito no tráfico de entorpecente.
Mas vira e mexe, em casos de menor repercussão, pululam decisões incompatíveis com o grau de garantismo que ao tribunal se atribui.
Duas decisões da 1ª Turma chamaram a atenção nesta semana, divulgadas por seu informe oficial. Na primeira delas, o STF negou a aplicação ao princípio da insignificância por ser o réu é reincidente.
Condenado pela tentativa de um furto de dois DVD’s (que somados valem R$ 34,90), ao réu foi afastada a aplicação do princípio da insignificância (ainda que o valor comporte, como admitiu o relator Marco Aurélio), apenas porque era reincidente –mesmo que a doutrina e o próprio tribunal já tenham reconhecido que o caso escapa da esfera do Direito Penal, pela exclusão da tipicidade.
Mas a tipicidade muda se o agente é reincidente? E se ele tiver apenas, “maus antecedentes”? Como construir a garantia do tipo, a principal dentro do direito penal, flexibilizando-a de acordo com cada réu? Seria apenas uma ponderação político-criminal ou uma inflexão no sentido de mudar o rumo e deixar de reconhecer a bagatela?
Considerando o voto do mais novo ministro, o festejado Luiz Fux, a segunda alternativa pode ser a mais provável: “se nós chegamos aqui para dizer que furtar DVD’s não é crime, nós estamos exatamente tornando antijurídica uma conduta que é notoriamente ilícita”.
Isso tem pouco a ver com o conceito de bagatela. Pode-se aplicar a uma banana também –porque, supõe-se, furtar bananas, também é “notoriamente ilícito”.
Mas nem tudo que é “notoriamente ilícito” está dentro do Direito Penal. Ou estará a partir de agora?
A segunda decisão é ainda mais preocupante: não aplicação da atenuante da confissão espontânea em caso de prisão em flagrante.
A hipótese é de um crime considerado grave: tráfico de entorpecentes de toneladas de maconha –volume de droga a que se reputou como “monstruosa”.
Como se sabe, a lei já permite a aplicação da pena em consideração ao volume do entorpecente traficado. E isso já fez a pena original ser aplicada bem acima de seu mínimo.
A questão que a Defensoria Pública da União suscitou diz respeito à falta de aplicação da circunstância atenuante obrigatória da confissão espontânea.
Como o patamar é livre, sua aplicação pode até não resultar em grande benefício para o réu. O juiz não é obrigado a baixar a pena ao mínimo –mas sim atenuar a pena em razão da confissão.
A decisão do HC 101.861 afasta essa aplicação, ao que nos foi possível depreender porque, como afirmou o mesmo Luiz Fux: “também entendo que confissão espontânea e o flagrante são contraditio in terminis (contradição em termos), não dá pra conviver. O preso em flagrante não fez favor nenhum à Justiça”.
A lei não disciplina que confissão espontânea se choca com a prisão em flagrante. Não há qualquer restrição na aplicação de uma circunstância com a outra. E a confissão não é propriamente um “favor” feito pelo acusado.
Compreende-se, seja pelo arrependimento demonstrado, seja pela maior segurança que confere à decisão, que a confissão, que sujeita o réu a uma condenação quase certa, deve ser premiada.
Pode-se discutir o fundamento de justiça da sanção premial e as figuras que analogamente com ela se articulam (como a delação), e uma potencial violação ao direito ao silêncio.
Mas, prevista na lei como circunstância atenuante, poderia ser desprezada porque “a prisão em flagrante” a torna desnecessária? E, se a prisão em flagrante torna desnecessária a confissão (o ministro Marco Aurélio arremata: ‘ o fato já se mostra de início bem esclarecido pelo flagrante’), o próprio processo seria, então, desnecessário, porque a prisão em flagrante, enfim, lhe é anterior.
Para que julgar, então?

(*) Marcelo Semer é juiz de direito em São Paulo e ex-presidente do Conselho Executivo da AJD (Associação Juízes para a Democracia)

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