Estado privatizado

Gilvander Moreira[1]

O setor de televisão no Brasil, dominado por empresas privadas, é um dos mais concentrados do mundo. A Globo controla 340 empresas; o SBT, 195; a Bandeirantes, 166; e a Record, 142. Ou seja, 843 empresas nas mãos, melhor dizendo, nas garras, de somente quatro megaempresas: Globo, SBT, Band e Record

“Vocês devoraram os campos e tudo o que foi roubado dos pobres está na casa de vocês. Que direito têm vocês de oprimir o meu povo e de esmagar a face dos pobres?” – oráculo de Deus Javé. (Isaías 3,14-15). Ao demonstrar a inconstitucionalidade e a imoralidade da privatização dos presídios, o que os Governos Aécio Neves e Antonio Anastásia (do PSDB/DEM) estão insistindo em fazer em Minas Gerais, o professor José Luiz Quadros de Magalhães pergunta: “Por que não privatizamos a Presidência da República, o Governo do Estado, o Legislativo e o Judiciário?” Quadros admite ter medo de perguntar e alguém gostar da idéia. Eu, também, temo, pois mesmo reconhecendo os grandes limites do atual modelo de Estado que temos, jamais devemos defender a extinção do Estado, o que beneficiaria somente aos adoradores do deus mercado e pisotearia os poucos direitos humanos conquistados pela sociedade civil organizada.
A iniciativa privada tem compromisso é com o lucro para seus próprios donos e/ou acionistas. Responsabilidade social e ecológica, só por força de lei e ainda como fachada estética para as empresas. É óbvio que o Estado, como comitê executivo da classe dominante, acaba sendo um meio legitimador dos processos de privatização do patrimônio público – água, solo e subsolo, bens naturais. Quando questionadas, as empresas logo se defendem: “Estamos agindo dentro da legalidade.” Não dizem que se trata de “legalidade” segundo interpretações que as beneficiam ou moldadas para atender a seus interesses privados.
O constitucionalista José Luiz pondera que se privatizássemos o Estado “diminuiríamos os gastos públicos e geraríamos empregos. Substituiríamos os juízes, desembargadores e ministros por árbitros privados (declarando a morte da imparcialidade e da igualdade processual); mediríamos a eficiência do Legislativo pelos seus poucos gastos e pela quantidade de projetos de leis que favoreçam as empresas a aumentarem seus lucros e teríamos um gerente nos executivos que, não tendo mais que fazer opções políticas (uma vez que decretaríamos também a morte da política e logo o enterro da democracia) devem ser apenas bons gestores.”
A bem da verdade, oficialmente, não temos um Estado privatizado, mas, na prática, o Estado brasileiro está profundamente privatizado, e o que é mais grave: não por uma rede de pequenas e médias empresas, mas por um oligopólio de grandes empresas, muitas delas transnacionais, que se ufanam dizendo que agem na legalidade, mas, nos bastidores e na calada da noite, fazem gigantescos lobbies para “obrigar” o Estado a criar leis imorais ou a aplicá-las usando dois pesos e duas medidas: para os pobres, o direito penal, com leis cada vez mais cruéis; para os ricos, o direito civil, ainda do Estado liberal que entende a propriedade privado como um valor supremo. Exemplos disso não faltam.
Os órgãos ambientais – Ministério do Meio Ambiente, IBAMA[2], Instituto Chico Mendes, Secretarias do Meio Ambiente estaduais e municipais, Instituto Estadual de Floresta, COPAM[3], COMAM[4] etc -, na prática, atuam como órgãos de fomento à produção. Curvam-se diante do império do capital obedecendo “ordens”, tais como: “não sejam obstáculos ao progresso e ao desenvolvimento econômico! Licenciem com rapidez, pois o atraso no início das obras podem gerar grandes prejuízos...” Não confessam que serão prejuízos para grandes empresas e seus acionistas, mas respeito ao povo que gozará de ambiente menos devastado, caso os bens de uso comum continuem preservados.
O Congresso Nacional está, na prática, privatizado, quando, por exemplo, por omissão, não legisla regulamentando a proibição constitucional da existência de monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social. Resultado: O setor de televisão no Brasil, dominado por empresas privadas, é um dos mais concentrados do mundo. A Globo controla 340 empresas; o SBT, 195; a Bandeirantes, 166; e a Record, 142. Ou seja, 843 empresas nas mãos, melhor dizendo, nas garras, de somente quatro megaempresas: Globo, SBT, Band e Record.
Está privatizado um judiciário que continua, de forma positivista, julgando como se o direito de propriedade fosse um direito absoluto, e mais, como se fosse só para 5% das pessoas; negando a força dos princípios constitucionais da dignidade humana – para todos e não só para brancos e ricos; fazendo vistas grossas à função social da propriedade e a tantos direitos sociais que foram conquistados a custa de muita luta, suor e sangue; juízes que desdenham da função social da propriedade, que chamam pobres organizados que estão na luta de “invasores”, “arruaceiros”, “turbadores da ordem” – capitalista, deveriam explicitar; um Tribunal como o TJMG[5], que aposenta compulsoriamente o juiz Dr. Livingsthon Machado por ter soltado 26 presos que estavam submetidos a tratamento cruel, desumano em cadeia superlotada de Contagem, MG.[6]
O Governo do estado de Minas, gestão de Aécio Neves e Anastásia, privatizou o estado de Minas quando, para satisfazer interesses econômicos de mineradoras, deixou de exigir licenciamento ambiental para empreendimentos minerários com extração até 300 mil toneladas por ano, através da Deliberação Normativa do COPAM n. 74/2004, que exigia apenas Autorização Ambiental de Funcionamento - AAF. Foi preciso muita luta para reverter o drible que o Governo mineiro estava dando na aplicação da legislação ambiental. Ouvindo os clamores das comunidades afetadas pela avalanche de devastação ambiental nas minas e nos gerais, o Ministério Público Estadual entrou com uma Ação judicial contra o Governo de Minas. Na Ação Civil Pública, os promotores argumentam que: "A lavra de minérios, cujo potencial degradador foi reconhecido até mesmo pela própria Constituição Federal (art. 225, § 2º.), foi objeto de tratamento específico pela Lei 7.805/89, Decreto 98.812/90 e Resoluções CONAMA 01/86, 09/90 10/90 e 237/97 (que exigem expressamente o licenciamento ambiental clássico para o exercício da atividade). Entretanto, a DN COPAM 74/2004 possibilita o funcionamento com base em mera AAF de uma série de atividades para as quais a normatização federal exige expressamente a elaboração de EIA/RIMA[7] e a sujeição ao processo de licenciamento ambiental clássico, violando frontalmente o ordenamento jurídico vigente".
Desde 2004, o Governo de Minas permitia a extração de até 300 mil toneladas de minério de ferro ao ano com base na mera expedição de uma AAF, sem qualquer estudo ambiental prévio, publicidade, anuência do município explorado ou monitoramento subseqüente dos impactos, considerando tal atividade como sendo de pequeno potencial degradador, por incrível que pareça.
Para se ter idéia do que isso representa, aduziram os promotores: "basta dizer que para transportar 300 mil toneladas de minério de ferro bruto são necessárias 10.715 viagens, utilizando-se caminhões com capacidade de 14 m3 (Scania P420)". Segundo os promotores da ação, "essa permissividade ambiental, flagrantemente ilícita, tem ocasionado sérios danos ao meio ambiente natural e cultural de Minas Gerais.” Até 300 mil toneladas por mineradora em cada mina. Imaginem quantas atuam em território mineiro e em quantas minas! São centenas, senão milhares.Mas em 11 de janeiro de 2011, o Ministério Público obteve importante decisão, em caráter liminar, para a preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural de Minas Gerais, segundo a qual o Estado de Minas Gerais não pode mais conceder AFF para atividades mineradoras. O juiz Osvaldo Oliveira Araújo Firmo argumentou na liminar que "As razões de ordem fática apontadas pelo Estado como justificadoras da burla à materialização do princípio da avaliação de impactos ambientais por meio do licenciamento ambiental, determinada pela Lei nº 6938/81 (art. 9o, III e IV e art. 10), são de lastimável impressão... Por tudo, resta claro que a AAF é um instrumento, por assim dizer mais frouxo, que o Estado de Minas Gerais optou por instituir, acreditando-se autorizado - à primeira vista - por uma retórica hermenêutica sintomaticamente casuística, para isentar-se de assumir suas atribuições legais...".
A liminar determina ainda ao Estado de Minas Gerais "a obrigação de não fazer consistente em abster-se, doravante, de conceder ou renovar quaisquer AAF para atividades de extração ou beneficiamento de minério de ferro no Estado de Minas Gerais, sob pena de multa de R$100.000,00 por ato praticado, sem prejuízo da responsabilidade penal e por ato de improbidade administrativa. Com isso fica suspensa a aplicabilidade do art. 2º da DN do COPAM n. 74/2004, até que contra ordem judicial delibere diferentemente".
Se o Tribunal de Minas derrubar a liminar, acima referida, estará atuando - como muitas vezes têm atuado - a serviço dos interesses mercadológicos das mineradoras, ou seja, privatizando, sem constrangimentos, o Poder Judiciário em Minas Gerais.
Espera-se, por fim, que essa liminar seja mantida pelos tribunais superiores, em caso de recurso. Homens e mulheres de toga que assim agirem estarão considerando a dignidade humana e planetária que clama por um Estado não privatizado.Belo Horizonte, 17 de janeiro de 2011.
[1] Frei e padre carmelita, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de Exegese e Teologia Bíblica, assessor de CEBs, CEBI, CPT, SAB e Via Campesina; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br e http://www.gilvander.org.br/
[2] Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais.
[3] Conselho de Política Ambiental.
[4] Conselho Municipal do Meio Ambiente.
[5] Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
[6] Antes de libertar os presos, o juiz Livingsthon clamou e reclamou por melhorias na prisão. Dia 11 de janeiro de 2011, o TJMG definitivamente aposentou compulsoriamente um juiz que não privatizava o judiciário.
[7] Estudos de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental.
(Ilustração: Latuff/Divulgação)

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