Relexões a sangue frio

Antonio Carlos Mazzeo (*)

Agora que a poeira baixou e a adrenalida caiu, vamos com tranquilidade, refletir sobre o significado da ocupação policial-militar das favelas do Rio de Janeiro, Vila Cruzeiro-Complexo do Alemão.
A Vila Cruzeiro, aliás, antigo Quilombo da Penha, formou-se no século XIX, logo após a abolição da escravidão. Por outro lado, o Complexo do Alemão, nasce sobre a serra da Misericórdia, no que foi uma antiga fazenda pertencente à um polonês, de nome difícil, apelidado de Alemão.
A área começou a ser vendida e muitos nordestinos chegam à região na década de 1960. Vinte anos depois, grandes ocupações definiram o perfil do local.
Hoje, o Complexo possui cerca de 160 mil habitantes. Em 1993, o Complexo do Alemão tornou-se oficialmente um bairro com níveis sociais de padrões africanos. Vejamos alguns dados:
- a região possui o maior índice do Rio de janeiro de crianças entre 7 e 17 anos fora da escola;
- 36% dos chefes de família possuem em média 4 anos de estudo;
- um em cada 11 moradores com mais de 15 anos é analfabeto;
- 11% das meninas entre 11 e 15 anos já são mães.
Esses são os dados objetivos das regiões que hoje personificam o "mal" no estado do Rio de Janeiro. Não precisamos de muito esforço para compreendermos o porque o Complexo, conurbado com um antigo quilombo, tornou-se um antro de miseráveis e de criminosos.
Se fizermos um retorno ao passado, ainda que de forma sumaríssima, podemos verificar que após a abolição da escravidão, milhões de negros e mestiços (negros com brancos, índios com brancos, negros com índios, etc) perderam o mínimo que possuíam para a sobrevivência.
De um momento para outro, passam de mão-de-obra de um sistema baseado no trabalho forçado-escravidão, para expulsos do sistema produtivo. Tornam-se livres das senzalas e cativos da miséria, jogados à própria sorte, excluídos da vida e da cidadania.
Aliás, ela mesma uma cidadania incompleta, porque resultado de um processo de independência que mais assemelhou-se à um arranjo entre as oligarquias no poder, que não emancipou o escravo e tampouco organizou a sociedade civil em moldes plenamente burgueses, e manteve a economia colonial até sua exaustão.
Mais ainda, a sociedade que emerge do império agro-exportador e escravista recompõe a economia colonial e continua a se integrar subordinadamente à economia internacional, isso de 1889 até os nossos dias, em que vivemos a plenitude de um capitalismo moderno e subalterno aos pólos internacionais do capital.
A integração do Brasil ao Ocidente foi e tem sido uma integração que pressupõe a inclusão-exclusora de milhões de nossos compatriotas. Fora da política, fora da economia, fora da cultura, "fora de lugar", esses brasileiros com suas cidadanias incompletas vagam pelas periferias das grandes cidades, são expulsos das terras que habitavam ancestralmente. Morrem de fome pelos caminhos, são espezinhados.
Mas também se revoltam e lutam! Organizam-se em movimentos e sindicatos. Preparam levantes contra os opressores e são massacrados pelo aparato estatal de origem escravista, com tradição de capitão do mato.
Lembremos dos quilombos, o emblemático de Palmares, da Conjuração Bahiana de 1798, liderada por mestiços; pela Balaiada, entre 1838 e 1841 no Maranhão, revolta de negros, caboclos e vaqueiros; da Sabinada, que proclamou a república na Bahia, em 1837 e de tantas outras, todas afogadas em sangue pelas oligarquias no poder! Recordemos das greves, que marcaram a luta dos trabalhadores desde finais do século XIX, perpassando o século XX e que continuam nesses inícios do novo milênio. Lembremos a greve de 1917, em São Paulo, contra o arrocho salarial e contra as longas jornadas de trabalho e que mudou o caráter da luta dos trabalhadores, com a organização do PCB, em 1922; do ABC de 1980, que gerou o PT, em 1980 e do Movimento dos Sem Terra!
Todas essas, lutas de oprimidos contra opressores. Todas elas, lutas pela real inserção dos que trabalham na economia e na vida político-cultural do país, em condições dignas de seres humanos!
Mas, apesar das infindáveis lutas e das conquistas alcançadas pelos oprimidos, o Brasil ainda repercute sua origem histórica colonial e escravista.
A tradição antidemocrática e exclusora de uma sociedade forjada na exploração radical dos trabalhadores se faz presente nos 43 milhões de brasileiros que ainda vivem na miséria extrema, e que não sairão dela apenas com programas de auxílio, como o bolsa família, necessário emergencialmente, mas ineficaz para a resolução desse grave e crônico problema.
Há que se construir uma democracia de fato em nosso país. A assim chamada "transição democrática" que marcou o fim do período militar-bonapartista, a ditadura militar 1964 -1985, não possibilitou a quebra da hegemonia da autocracia burguesa.
Ao contrário, ampliou a margem de manobra de uma burguesia autocrática e manipuladora possibilitando a cooptação de setores do proletariado para o projeto de um novo processo modernizador-capitalista de inserção subordinada aos interesses do imperialismo agora, administrado por segmentos cooptados de "esquerda" que pactuaram com a burguesia como o PT, gerente do capital juntamente com seus office-boys aliados.
O que temos, então, é uma realidade em que milhões de brasileiros se deslocam para regiões mais desenvolvidas em busca de melhores condições de vida, indo para as periferias das grandes capitais, gerando concentrações de miseráveis.
Se, de fato, não há uma relação mecânica entre pobreza e criminalidade, como atestam muitas pesquisas sociológicas, isso não significa, por outro lado, a impossibilidade de uma relação entre elas. Ao contrário. Sabemos que nos centros urbanos materializam-se e agudizam-se as contradições e tensões sociais, seja pelo curto espaço físico degradado das periferias, seja pela ausência de possibilidades de sobrevivência.
A criminalidade é um fenômeno ligado à falta de alternativas sócio-econômico-culturais e à ausência de políticas sociais públicas, fatores também eles, comprovados por vasta literatura sociológica. Sabemos que são intrínsecos ao capitalismo a "exclusão", a miséria e a marginalidade.
Para constatarmos esse elemento de essência dessa sociabilidade não precisamos ir muito longe no tempo. F. Engels já alertava para essa combinação. Em seu A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, de 1844, nos fornece dados impressionantes sobre as condições de vida do proletariado e do "sub-proletariado” inglês.
Na década de 1840, 10% da população inglesa era formada por indigentes. Nesse período, a taxa de mortalidade é altíssima, principalmente nos bairros proletários, onde os trabalhadores viviam amontoados em cortiços sórdidos, infestados de epidemias. De modo que a polarização social manifestava-se nos confrontos operários e, nas áreas desorganizadas do proletariado, consubstanciava-se na violência criminal sem sentido imediatamente político, como retratada nos meninos ladrões do romance de Charles Dickson, Oliver Twist, a multidão aglomerada gerando a sensação de que tudo é sem regras e sem vida e de que vale tudo, como realça Alan Poe, em seu O Homem das Multidões, onde descreve a multidão disforme, os miseráveis comerciando o vício, as prostitutas, as crianças, num mosáico tétrico de uma cidade impondo o capitalismo nascente e que seria espelho para o resto do mundo. Ainda Engels nos dá um relato aterrorizante das condições de vida do proletariado em Londres:
Um lugar chocante, um diabólico emaranhado de cortiços que abrigam coisas humanas arrepiantes, onde homens e mulheres imundos vivem de dois tostões de aguardente, onde colarinhos e camisas limpas são decências desconhecidas, onde todo cidadão carrega no próprio corpo as marcas da violência e onde jamais alguém penteia seus cabelos”. (op. cit.)
De modo que se não há relação direta entre pobreza e violência, podemos dizer que essa relação tem efeito sinergético e potencializa a criminalidade na convergência miséria-degradação humana!
Zola, equivocadamente, baseado nas transposições mecânicas de Darwin, em seu La Bête Humaine, acaba defendendo a idéia de que a miséria gera uma "sub-espécie humana". Mas ali, mesmo de um modo tosco, inexato e sem nenhuma base científica, Zola intuitivamente detecta que não é só a miséria, mas também seu ambiente degrado que gera a bestificação do ser humano.
Ora, nas favelas do Rio de Janeiro e nas periferias das capitais do Brasil essa condição é que mais inside! Miséria e degradação humana, oriundas do descaso do Estado, de seus dirigentes e de um capitalismo periférico e cruel.
De tal condição degradada não esperaríamos que desse meio nascessem anjos. Na ausência do Estado e no contexto de uma “multidão desorganizada e na condição de consciência em-si, nasce a criminalidade. Na violência da fome, da ignorância, do abandono, da exploração social e da total imersão num mundo da carência absoluta, nasce o crime organizado.
E. Hobsbawm, em seu clássico trabalho, Rebeldes Primitivos, nos dá a dimensão da unidade entre a exploração social e o banditismo:
"[...] o banditismo é apenas uma forma primitiva de protesto social organizado, talvez o mais primitivo que conheçemos. De qualquer forma, ele é assim considerado pelo homem pobre em muitas sociedades que, em consequência, protege o bandido, considera-o como seu herói, transforma-o em seu ideal e faz dele um mito [...]” (op. cit.)
Dessa forma, parafraseando o artigo de Marcelo Freixo, não há vencedores. Engana-se o cel. comandante geral da polícia militar do Rio de janeiro, Mário Sérgio Duarte, quando diz: " Vencemos". A pergunta imediata que faço é, vencemos quem, cara pálida? A ação policial-militar nessas favelas, ainda que resultante de uma situação extrema, é o produto mais direto da inépcia do Estado, secularmente insensível e conivente com o abandono e a exploração a que são submetidas essas populações marginalizadas da vida nacional!
Ao invés de "vencemos", esse soldadinho vestido de guerreiro deveria dizer, VERGONHA! Vergonha de termos no Brasil situações de absoluta miséria e exploração que produz uma situação social inaceitável como essa! Vergonha por pertencer à um corpo policial que não consegue diferenciar inimigo de flagelado! Vergonha por pensar e agir como capitão-do-mato de seu povo.
Na realidade, todos nós devemos nos indignar diante desses acontecimentos. Dai, devemos repensar as saídas que, seguramente, não passam por soluções policialescas ou militares, como querem os soldadinhos vestidos de guerreiros e os falcões da lumpen (em alemão- farrapo)-burguesia brasileira.
Soluções existem, e elas passam por vigorosas políticas sociais, por educação, trabalho e saúde. A solução militar é o sonho dos que desejam manter as coisas como estão, limpando etnicamente a cidade do Rio de Janeiro, expulsando os moradores dos morros para as mais profundas e miseráveis perifierias do estado, tranformando os locais onde estão as favelas, em sua maioria privilegiados, em condomínios de luxo.
Devemos combater o banditismo sem tergiversações, inclusive aquele de colarinho branco, que comanda o tráfico de sua cobertura e de sua mansão nos bairros nobres das grande cidades brasileiras e estrangeiras, os que aplicam os rendimentos do crime em bancos internacionais, engordando o capital financeiro internacional. Isso é um fato.
Mas junto com isso, devemos propor desde já uma outra ofensiva, a dos trabalhadores em defesa desses oprimidos e dos oprimidos em todo o Brasil. devemos propor a ofensiva socialista.

(*) Antonio Carlos Mazzeo é professor universitário e autor de diversos livros; Foi candidato a senador por S.Paulo nas últimas eleições, pela legenda do PCB, do qual é um dos dirigentes nacionais.

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