CUBA É UMA DITADURA?

Ao redor de 300 dos 603 membros da Assembléia Nacional não são filiados comunistas


Essa discussão é um capítulo importante na agenda da contra-ofensiva à hegemonia do pensamento de direita



(*) Breno Altman



O novo presidente do PT, José Eduardo Dutra, em entrevista ao jornalista Fernando Rodrigues (Folha de S.Paulo), no último dia 11/02, respondeu afirmativamente à pergunta
que faz as vezes de título desse artigo. Com ressalvas de contexto, identificando no longo
bloqueio norte-americano uma das causas do que chamou de “fechamento político”, Dutra
assumiu a mesma definição dos setores conservadores quando abordam a natureza do
regime político existente na ilha caribenha.
Essa discussão é um capítulo importante na agenda da contra-ofensiva à hegemonia do
pensamento de direita. Afinal, a possibilidade do socialismo foi estabelecida pelos centros
hegemônicos não apenas como economicamente inviável e trágica, mas também como
intrinsecamente autoritária.
Quando o colapso da União Soviética permitiu aos formuladores do campo vitorioso declarar
o capitalismo e a economia de livre-mercado como o final da história, de lambuja também
fixaram o sistema político vigente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos como a única
alternativa democrática aceitável.
Não foram poucos os quadros de esquerda que assumiram esse conceito como universal e
abdicaram da crítica ao funcionamento institucional dos países capitalistas. Alguns se
arriscaram a ir mais longe, aceitando esse modelo como paradigma para a classificação dos
demais regimes políticos.
Na tradição do liberalismo, base teórica da democracia ocidental, a identificação e a
quantificação da democracia estão associadas ao grau de liberdade existente. Quanto mais
direitos legais, mais democrático seria o sistema de governo. No fundo, democracia e
liberdade seriam apenas denominações diferentes para o mesmo processo social.
Pouco importa que o exercício dessas liberdades seja arbitrado pelo poder econômico. As
disputas eleitorais e a criação de veículos de comunicação, por exemplo, são determinadas
em larga escala pelos recursos financeiros de que dispõem os distintos setores políticos e
sociais.
No modelo democrático-liberal, afinal, os direitos formais permitem o acesso irrestrito das
classes proprietárias ao poder de Estado, que podem usar amplamente sua riqueza para
mercantilizar a política e seus instrumentos, especialmente a mídia. Basta acompanhar o
noticiário político para se dar conta do caráter cada vez mais censitário da democracia
representativa.
A revolução cubana ousou ter entre suas bandeiras a criação de outro tipo de modelo político,
no qual a democracia é concebida essencialmente como participação popular. Ao longo de
cinco décadas, mesmo com as dificuldades provocadas pelo bloqueio norte-americano, forjou
uma rede de organismos que mobilizam parcelas expressivas de sua população.
A maioria dos cubanos participa de reuniões de células partidárias, do comitê de defesa da
revolução de sua quadra, dos sindicatos de sua categoria, além de outras organizações
sociais que fazem parte do mecanismo decisório da ilha. Não são somente eleitores que
delegam a seus representantes a tarefa de legislar e governar, ainda que também votem para
deputados – o regime cubano é uma forma de parlamentarismo. Esse tipo de participação
talvez explique porque Cuba, mesmo enfrentando enormes privações, não seguiu o mesmo
curso de seus antigos parceiros socialistas.
O modelo cubano não nasceu expurgando seus opositores ou instituindo o monopartidarismo.
Poderia ter se desenvolvido com maior grau de liberdade, mas teve que se
defender de antigos grupos dirigentes que se decidiram pela sabotagem e o desrespeito às
regras institucionais como caminhos para derrotar a revolução vitoriosa. Na outra ponta, as
diversas agremiações que apoiavam a revolução (além do Movimento 26 de Julho, liderado
por Fidel, o Diretório Revolucionário 13 de Março e o Partido Socialista Popular) foram se
fundindo em um só partido, o comunista, oficialmente criado em 1965.
Os círculos contra-revolucionários, patrocinados pelo governo democrata de John Kennedy,
organizaram a invasão da Baía dos Porcos em 1961. Aliaram-se a CIA em algumas dezenas
ou centenas de tentativas para assassinar Fidel Castro e outros dirigentes cubanos.
Associados a seguidas administrações norte-americanas, criaram uma situação de guerra e
passaram a operar como braços de um país estrangeiro que jamais aceitou a opção cubana
pela soberania e a independência.
A restrição das liberdades foi a salvaguarda de uma nação ameaçada, vítima de uma política
de bloqueio e sabotagem que já dura meio século. Os Estados Unidos dispõem de diversos
planos públicos, para não falar dos secretos, cujo objetivo é financiar e apoiar de todas as
formas a oposição cubana. Vamos combinar: já imaginaram, por exemplo, o que ocorreria se
um setor do partido democrata recebesse dinheiro cubano, além de préstimos do serviço de
inteligência, para conquistar a Casa Branca?
Claro que o ambiente de guerra e a redução das liberdades formais impedem o
desenvolvimento pleno do modelo político fundado pela revolução de 1959. Vícios de
burocratismo e autoritarismo estão presentes nas instâncias de poder. Mas ainda nessas
condições adversas, o governo cubano veio institucionalizando interessante sistema de
participação popular. O contrapeso ao modelo de partido único, opção tomada para blindar a
revolução sob permanente ataque, é um sistema de organizações não-partidárias que
exercem funções representativas na cadeia de comando do Estado.
A Constituição de 1976, reformada em 1992, estabeleceu o ordenamento jurídico do modelo.
Um dos principais ingredientes foi a criação do Poder Popular, com suas assembléias locais,
municipais, provinciais e nacional. Seus representantes são eleitos em distritos eleitorais, em
voto secreto e universal. Os candidatos são obrigatoriamente indicados por organizações
sociais, em um processo no qual o Partido Comunista não pode apresentar nomes – aliás, ao
redor de 300 dos 603 membros da Assembléia Nacional não são filiados comunistas.
O Poder Popular é quem designa o Conselho de Estado e o Conselho de Ministros, principais
instâncias executivas do país, além de aprovar as leis e principais planos administrativos.
Seus integrantes não são profissionais da política: continuam a desempenhar suas atividades
profissionais e se reúnem, em âmbito nacional, duas vezes ao ano para deliberar sobre as
principais questões.
A Constituição também prevê mecanismos de consulta popular. Dispondo desse direito, o
dissidente Oswaldo Payá, líder do Movimento Cristão de Libertação, reapresentou à
Assembléia Nacional do Poder Popular, em 2002, uma petição com 10 mil assinaturas para
que fosse organizado referendo que modificasse o sistema político e econômico na ilha.
O governo reuniu 800 mil registros para propor outro plebiscito, que tornava o socialismo
cláusula pétrea da Constituição. Teve preferência pela quantidade de assinaturas. Cerca de
7,5 milhões de cubanos (65% do eleitorado), apesar do voto em referendo ser facultativo,
votaram pela proposta defendida por Fidel Castro.
Tratam-se apenas de algumas indicações e exemplos de que o novo presidente petista pode
ter sido um pouco apressado em suas declarações. As circunstâncias históricas levaram
Cuba a restringir liberdades. Mas seu sistema político deveria ser analisado com menos
preconceito, sem endeusamento do modelo liberal, no qual a existência de direitos formais
amplos não representa garantias para um funcionamento democrático baseado na
participação popular.

(*)Breno Altman é jornalista e diretor do sítio Opera Mundi (http://www.operamundi.com/.

(Agência Brasil de Fato)

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