A hora da verdade







Mário Albuquerque






É preciso que as pessoas, individualmente, e a ampla gama de organizações sociais, profissionais e políticas, que não perderam a memória do quanto custou à nação brasileira a reconquista do Estado Democrático de Direito, fiquem atentas e engajem-se, sob variadas formas, nessa nova e decisiva fase que visa completar e consolidar a construção da moderna democracia brasileira iniciada com a Constituinte de 1988, que é proporcionada pelas propostas contidas no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH).




O que está em jogo é uma questão simples: o direito do povo brasileiro a ter acesso à verdade sobre sua história. Há uma parte dessa história que está abafada e diz respeito à atuação do Estado brasileiro em relação aos cidadãos que não aceitaram a ilegalidade da ruptura da ordem constitucional democrática, em 1964, por parte de um segmento militar e civil da sociedade brasileira, e se recusaram a submeter-se ao regime ilegítimo, imposto pela força, numa usurpação do poder legítimo oriundo das urnas.
Denúncias existentes nos arquivos das auditorias militares, nos dossiês levantados por organismos de defesa dos direitos humanos, nos bancos de dados dos jornais e em provas testemunhais não deixam dúvidas quanto a violações graves dos direitos humanos & assassinatos, torturas, ``desaparecimentos`` de opositores e de pessoas ligadas a estes (apenas por parentesco, laços de amizade ou atividade profissional), praticadas por agentes do Estado, nesse período, sem que tenha sido possível, até agora, esclarecê-las, mesmo após a reconstituição do Estado Democrático de Direito.
Ora, esse fato tem impedido que a sociedade brasileira cicatrize suas feridas e possa, finalmente, olhar para frente. Isso nunca poderá ocorrer, sem a satisfação a tantas famílias vitimadas, que têm o direito de saber o que ocorreu com os seus entes queridos. Só a verdade poderá proporcionar a criação desse clima almejado por todos.



Foi pensando nisso que o governo teve a lucidez e o senso de justiça, de aceitar a proposta da Conferência Nacional de Direitos Humanos, depois de recolhidas as sugestões das conferências regionais, durante vários meses, colocando como um dos itens da terceira versão do PNDH a criação de uma Comissão da Verdade (como tinha sido cobrado, aliás, pela ONU e a OEA) para realizar essa tarefa.
Bastou esse anúncio para o mundo vir abaixo: desencadeou-se uma campanha desinformativa, na base de informações falsas. Em primeiro lugar, a Comissão é apenas de esclarecimento dos fatos, não de punição de possíveis responsáveis (só o Judiciário poderia fazer isso, se assim o entendesse). Em segundo lugar, não visa à revogação da Lei da Anistia. Na verdade, ninguém no governo tem essa proposta.



O que está em curso, por iniciativa do Conselho Federal da OAB é uma interpelação ao STF para que defina a interpretação da Lei da Anistia e sua abrangência (que a OAB entende não beneficiar os agentes do Estado que praticaram crimes de lesa-humanidade).



Fora disso, o que há é o velho artifício de se criar uma crise artificial para mais uma vez tentar sonegar essas informações. Contudo, a sociedade brasileira já está muito amadurecida para continuar a cair nesse engodo.




Mário Albuquerque é presidente da Associação 64/68 Anistia e membro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
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