Em defesa do diploma

Profissão não é função

* Hermínio Prates

Quem é do ramo sabe que tudo começou com o pioneirismo do Correio Braziliense e o oficialismo da Gazeta do Rio de Janeiro. A história da imprensa brasileira é cheia de controvérsias e Hipólito José da Costa até hoje divide opiniões. Para uns ele merece loas de heróico defensor da independência; outros o consideram um esperto de ocasião. Ninguém cobra nada da Gazeta, criada pelo poder para apenas dela servi-se. Já a memória do editor do Correio ainda conserva a nódoa da dubiedade: foi um herói da palavra ou um farsante? Há provas de que ele, magoado com a falta de apoio financeiro dos portugueses, se bandeou para o lado inglês. Daí a origem das críticas. Um complicador para os que defendem a pureza de Hipólito é explicar as muitas libras recebidas da coroa inglesa.
O intróito – espécie de nariz-de-cera em texto de jornalistas veteranos – serve para lembrar que a imprensa brasileira pode ser analisada sob olhares vários. Aos pioneiros seguiram-se os destemidos panfletários em caminhada longa. E o esgrimir de palavras na defesa de ideias, como não poderia ser diferente, atraiu intelectuais e aprendizes; os primeiros com o saber enriquecido pelo pensamento francês, principalmente; os outros sendo forjados no calor das redações, no aprendizado de cada dia. Claro, não havia nenhum curso específico: advogados, médicos, engenheiros e outros profissionais liberais colaboravam com os jornais. Pensadores e escritores, com ou sem formação superior, viram nos periódicos um escoadouro natural para seus textos. Editoriais, artigos, colunas, notas críticas, reportagens; tudo era produzido por essa turma que se transformou na elite pensante do país. Não eram jornalistas profissionais; poucos ganhavam quase nada e a maioria colaborava sem remuneração. Em alguns casos, nem o dono ganhava dinheiro.

A exigência do diploma

O tempo e a prática criaram jurisprudência e a exemplo de outras atividades, o jornalismo passou a exigir especialistas; a fase industrial da imprensa brasileira cobrou exclusividade, mesmo não pagando salários compatíveis. Na medicina os misturadores de poções foram desautorizados e até perseguidos, pois a cura passou a ser exclusiva dos médicos. “O balcão da farmácia é ponto de venda e não indicador de mezinhas”, impuseram as leis. O mesmo aconteceu com os mestres do cimento e do tijolo, pois já não podiam construir nada sem um engenheiro por perto. Com o tempo, a regência das leis definiu responsabilidades e impôs limites; as atividades foram regulamentadas. Não se podia mais advogar sem anel no dedo e diploma na parede; a escrituração passou a exigir o jamegão do contador. Cada profissão requer indispensável saber. “E o diploma!..”, exigiram as leis.
Para que os cursos formadores de jornalistas surgissem, a universidade recrutou calejados peleadores das redações que contribuíram decisivamente para o sucesso da empreitada. Educadores humanistas aliaram o domínio da teoria à riqueza da prática; definiram metas, pensaram conteúdos e estruturaram currículos. Foi assim no Brasil, foi assim em Minas. E não foi só o jornalismo que adotou a receita: os cursos de relações públicas, publicidade e propaganda também o fizeram. Curso criado, já não havia desculpa para que o jornalismo fosse profissão para alguns e diletantismo para outros.
Se não foi perfeita, a legislação já era um avanço. É o caso do decreto-lei 972/69. Estava quase tudo lá, preto no branco. Mas nas vírgulas da lei sempre se penduram os espertos. Embora reconhecendo direitos aos antigos colaboradores – com alguns se tornando jornalistas provisionados – ainda se admitiam cambalhotas sob as grossas vistas da fiscalização: nas redações, a cada dois jornalistas formados a lei admitia o provisionamento de um, desde que respeitados determinados prazos. Há quem defenda que essa proporcionalidade evitou injustiças, embora desagradasse aos que já tinham formação superior. Mas a porta seria fechada, garantia o texto legal. Fechada até que foi, mas os que se julgam donos do quarto poder a arrombaram!..

Os empresários sofismam

Ao contrário do que se pensa, a pendenga é antiga e os empresários pisam na lei, manipulam informações e sofismam em tempo integral. “Jornalista consciente exige independência; isso não é bom para o negócio”, raciocinam os seguidores de William Randolph Hearst. E eles admitem patrocinar até o casamento do lobisomem com a mula-sem-cabeça, mas não querem ouvir nada que se refira à obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista.
Escrevi “profissão” e não função e aí está a diferença. Um jornalista – ou qualquer outro profissional - pode fazer o serviço inerente a determinada função (telefonista, ascensorista, digitador), mas a recíproca não é verdadeira. Jornalista é um profissional legalmente habilitado. Da mesma forma que o advogado, médico, engenheiro ou contador. Qualquer um desses é um profissional especializado, não importa se trabalhe em um jornal, construtora, hospital ou loja de roupas. Nenhum deles deixa de ser profissional por trabalhar numa empresa com atividade diferenciada. O profissional é o mesmo, sobre a terra ou sob as águas. Com treino e aptidão física todos podem ser escafandrista, mas o escafandrista, sem curso universitário, não pode exercer nenhuma das profissões citadas.
O qüiproquó sobre o diploma está de volta. Lembro o fim dos anos 70, início dos 80. Durante uns quatro anos mantive uma coluna – Microfone Aberto - no extinto Jornal de Minas e freqüentemente denunciava a funesta ação dos picaretas nos jornais, rádios e televisões. Nunca foi fácil o combate a esses gafanhotos da comunicação; nem mesmo a Comissão de Fiscalização instituída pela diretoria do nosso sindicato (gestão comandada pelo Manoel Marcos Guimarães) erradicou a praga. Nós – e como membro da diretoria dela fiz questão de participar – acionamos as frágeis armas disponíveis, mas pouco conseguimos diante da prepotência dos patrões da mídia. Os para-quedistas, mesmo limitados a poucas dezenas, já minavam o árduo mercado de trabalho. Eram políticos frustrados, mocinhos deslumbrados e até ex-jogadores de futebol. Hoje, infelizmente, eles são centenas, milhares nesse Brasil de leis tão frouxas.
E, compactuando com os interesses do empresariado, de vez em quando uma decisão judicial, por provisória que seja, permite a invasão de outros tantos que se crêem jornalistas. Aconteceu na década passada, se repetiu em 2001 e mais uma vez agora. Quando a afronta se repete os barões da mídia ficam mais felizes do que pinto no lixo, ciscando e espoliando sobre o direito alheio. Isso é muito bom para eles, é cômodo. Afinal, entre lidar com um mamulengo deslumbrado ou com um profissional consciente, é preferível a primeira hipótese; ele custa quase nada e é muito mais fácil de manter sob cabresto.

Benzedeiras e feitiços

Uma prova da falta de seriedade nesse paraíso da trampolinagem foi publicado pela Folha de S. Paulo, na página A4, edição de 8 de novembro de 2001. Sob o título “Reserva de mercado”, a nota é um primor e vale a pena ser transcrita: ”A Comissão de Assuntos Sociais do Senado discutiu na manhã de ontem por quase duas horas um projeto que cria a profissão de treinador de goleiro. O texto aprovado prevê que só poderá exercer a atividade quem possuir diploma de professor de educação física ou já tiver cinco anos de experiência. A oposição votou contra o projeto, que ainda terá de passar por deliberação do plenário. Tião Viana (PT-AC), um dos representantes da oposição na comissão, argumentou que o projeto estava criando uma espécie de casta. Disse que a atividade deveria ser aberta a qualquer tipo de profissional. Um ex-goleiro, por exemplo. Rindo, o senador Tião ironizou a aprovação do projeto: - Em breve, desse jeito, o Senado vai acabar criando a profissão de benzedeiras. Mas vai exigir que tenham nível superior em feitiço.”
Além de rir e lamentar a falta de seriedade desses legisladores de condenável postura, acho que as associações de classe – que já lutam contra o esbulho - deveriam também mobilizar os alunos dos cursos de comunicação. Só a pressão deles seria capaz de acordar os donos do ensino superior; eles também têm interesse – e bota interesse nisso! – em preservar a profissão no jornalismo para aqueles que têm formação superior.
Os argumentos usados por alguns juristas não convencem, pois se verdadeiros, poderiam ser usados também para assegurar, por exemplo, o exercício da profissão de advogado por qualquer experimentado funcionário do setor de pessoal (recursos humanos) de qualquer empresa. Pelo que já vi e vivi, há muito encarregado de setor bem mais qualificado do que certos advogados que labutam na justiça trabalhista. O mesmo se pode dizer de funcionários de cartórios, alguns deles com maior bagagem do que festejados bacharéis.
Mas como estamos na terra que sepultou Kafunga - o folclórico comentarista que sempre repetia que “no Brasil, o errado é que está certo” -, só resta ao jornalista pagar para ver, mesmo que o preço seja amargo.


· Jornalista
herminioprates@yahoo.com.br

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